Por fim, a redenção

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Existe uma diferença quase imperceptível entre o que você efetivamente viveu e o que a sua memória quer guardar. Às vezes as histórias não batem, os desfechos se desencontram e, frequentemente, os meios e detalhes e contextos são vistos de formas distintas. Tal fenômeno ocorre porque temos tendência a carregar o que queremos, é a tal imagem, o tal sonho. Os tais nem sabemos o quê, mas que precisamos construir e cuidar para que não desabem, pois dessa forma é mais fácil viver.

Não sei direito o que é ou deixou de ser, como foi ou era para ter sido, mas lembro que foi louco. Um atropelamento sem socorro. Uma taça de cristal atirada do décimo andar do edifício bonito lá da Avenida Carlos Gomes. É necessário dizer que a atropelada fui eu e que as muitas partes na avenida me pertenciam? Tudo bem, vamos falar sobre. Faz parte da cura. Por falar em cura, fui a maior consumidora de livros baratos de auto-ajuda. Nem tão baratos assim, confesso. Já percebeu que tudo tem a ver com o momento? A prateleira da livraria acaba te atraindo justamente pelo seu (des)equilíbrio emocional. E foi assim que aconteceu.

Eu era linda e loira e cheia de medos. Você era lindo e tinha o cabelo encaracolado e disse que me queria na sua vida. Fiquei meio atônita, fiz tudo aquilo que nós sabemos, você fez tudo aquilo que também sabemos e aí a história aconteceu de um jeito para mim e de outro para você. Fim. Espera, antes do fim teve o meio: você me queria para sempre. E quis brincar de casalzinho. É, você perguntou o que a minha família acharia se eu fosse morar com você. Então não te levei nada a sério. E você casou com outra pessoa. E, quando me dei conta, estava no caixa da Cultura pagando sei lá quanto por um livro cujo título é “Por que os homens se casam com algumas mulheres e não com outras?”. Enquanto eu passava as noites de sexta engalfinhada com o tal livro e alguma bebida colorida e vagabunda e lenços de papel úmidos e amassados e fotos nossas quase destruídas e o nariz completamente vermelho e endubido, você devia estar em algum lugar da Europa, em uma inesquecível lua-de-mel, com a sua esposa de olhos verdes.

Doía, mas eu procurava me manter por dentro da sua vida. Procurava notícias, perguntava e buscava entender alguma coisa, mas nunca entendia nada. Terminei o livro de capa azul e não entendi por que os homens se casam com algumas mulheres, e não com outras. Quando dei por mim, lá estava eu na Cultura de novo. No caixa. Pagando por um livro de auto-ajuda. Título? Tente adivinhar. “Do que os homens gostam”. Sei que alguns gostam de mulheres com tendências piranhísticas. Outros gostam de Amélias. Outros de loiras. Outros de morenas. Outros, até, nem gostam de mulher. Terminei o segundo livro, lá pelas tantas descobri que acabei com o estoque de lenços de papel do mercadinho lá da outra quadra. Apelei para o papel higiênico mesmo. Mas meu nariz é sensível, estava em estado de calamidade pública. Pobre bicho. Foi quando me olhei no espelho e não me reconheci. Você sabe o que um pé na bunda faz com uma mulher? Não é o pé na bunda em si, mas o que há por trás. Tem todo aquele complexo de rejeição, a paranóia do o-que-ela-tem-o-que-ela-faz, a sensação de sonhos estragados, o sentimento de perda de controle, fora a pena que você sente. Pena de você mesma. Coitada de mim, sofrenilda master, o que farei sem aquele que era o mais idolatrado? Não sabia o que fazer, mas fiz. Volta para a parte em que, um belo dia, me olhei no espelho. Vamos de novo: era uma linda tarde - de algum mês que não lembro - quando encontrei um monstro gordamente moreno e sardento como reflexo.

Sou loira desde que nasci, mas fiz a burrice de pintar o cabelo, essa coisa que mulher faz quando é deixada, largada. Não importa se o cara te disse “tô te deixando” ou se ele saiu porta afora ou se simplesmente nem te deu satisfação. Ele te deixou. Ele te trocou. É isso que importa. A gente pira, quer cortar ou mudar a cor do cabelo ou, ainda, pintar as unhas de preto e virar dark. No fundo, nem sabemos, só queremos mudar de cara. E de vida. E de coração, talvez. Acho que não queremos é olhar com olhos reais os nossos olhos que estão tristes. Só pode ser isso. Tapeia aqui, tapeia ali, pronto, ignora o problema. Então eu pintei o cabelo. Primeiro foi castanho claro, depois foi castanho escuro. Ficou quase preto, eu parecia a Branca de Neve (sem nenhum anão para ajudar a contar o final da história).

Eu devia ter tomado choque, talvez fosse melhor ter enfiado os dois dedos molhados na tomada. Em dois anos fiz a minha vida virar um inferno. Relacionamentinhos furados, muito trago, cartas que viraram churrasco, insônia, dificuldade imensa de fazer voltar ao normal a cor da juba, talvez eu tenha ganho uns pés de galinha, vai saber? E o principal: vinte e três quilos a mais. Nem grávida engorda isso. Você sabe: quando a auto-estima está quase inexistente e você leva um susto ao ver que está mal-acabada-mente gorda.com.br o que acontece? Você come mais, dorme mais, bebe mais. Em outras boas e diretas palavras: você termina de se foder. Sozinha, lógico. Bem sozinha, pois o bonitão está lá com a super mulher, na super casa, com o super trabalho, os super amigos, os super cachorros, a super piscina, a super cama, a super sala. E, de alguma forma, com o seu super coração.

Por entre as frestas de brigas, desculpas, agressões, revoltas e recordações, surgiu uma pequena luz. Não preciso explicar que quando nós gostamos de alguém qualquer luz vira esperança. De que a pessoa mude. De que você mude. De que tudo mude. Tentei entrar no seu jogo, se é que havia algum jogo, sabe como é, nosso pensamento é que nem roda gigante. Fica andando em círculos, pára. Anda, pára. E começa tudo de novo. Você pode até pensar que fez de tudo, mas o lado de lá certamente terá outra visão. Quem inventou que tudo tem dois lados? Se alguém descobrir me avise, eu enforco.

Eu queria - muito - ser importante para você. Acabei esquecendo que não há nada que possa ser forçado, pelo menos em matéria de amor. O amor não força, ele liberta.

Bem no final de tudo eu entendi que precisava, enfim, me libertar. E acabei descobrindo que ninguém vale o preço da minha auto-estima, pois demorei sete meses para mandar toda aquela banha embora.
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