Auto-alta

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Quando criança, se você teve pais ligeiramente inteligentes e coerentes e não tão dementes, é provável que tenha ouvido muitos nãos. Não enfia o dedo molhado na tomada, não empurra o irmãozinho, não come meleca do nariz, não rói unha, não responde desse jeito que é feio, não corta o cabelo da Barbie porque não cresce de novo, não vê televisão até tarde, não vai comer miojo hoje, não pode dormir na minha cama, não quebra o meu vaso tailandês, não pode riscar as paredes de canetinha rosa choque, não, a cadela não é cavalinho.


Depois que virou adolescente, apesar de já estar mais ou menos familiarizado com o não, volta e meia ele dava as caras e os tapas na sua cara. Não volta tarde, não vai sair hoje, não vou te buscar às cinco e vinte e nove da manhã, não vai dormir na casa do namorado, não grita comigo, não tô a fim de relacionamento sério, não pode colar na prova, não é pra destratar os mais velhos e mais chatos, não é possível que você queira uma calça só porque todo mundo tem, não vai sair sem roupa na rua, não, não é você, sou eu.


Até que enfim você cresceu. A gente cresce, a quantidade de nãos também. Não posso ser o único adulto da relação, não dá pra parar de malhar, não dá pra acreditar que todo mundo é meu amigo e bonzinho e gente fina, afinal, tem gente grossa pra caramba. Não vou publicar o seu livro e não adianta chorar e não pode arrancar os cabelos por isso e não fica me mandando a toda hora os originais porque aqui não vai rolar, minha filha. Não, eu não sou sua filha e ainda bem que não preciso dessa editorazinha de merda pra viver. Não, ninguém vive de literatura, só o Paulo Coelho. Não estou recalcada e não quero conselhos, por isso não lotem a minha caixa de e-mails, é só um texto e nada disso é verdade, não é verdade. Não é verdade e não e não e não. Não é. Não, o meu blog não é confessionário, nem diário, nem nada do que muita gente ainda pensa. Não, os fatos aqui relatados não são reais. Não, eu não falo da minha vida. Não, eu não sou uma escritora revoltada. Não estou de tpm e não ganhei na sena. Não uso o espaço-blog pra mandar recados ou dar alfinetadas. E não quero mais receber e-mails solidários que dizem ai, coitada, isso já aconteceu comigo. Antes que eu me esqueça: não sou terapeuta virtual de ninguém, não sou psicóloga, fugi daquele lugar cheio de pseudoloucos porque não é a minha praia. Eu não gosto de praia e prefiro lugar frio com montanhas. Não gosto de ficar dando conselhos e não sou a melhor pessoa do mundo. Sim, estou falando a verdade.


O não embaralha a cabeça da gente e faz o sim se esconder num canto qualquer. Para algumas pessoas o não traumatiza, o não paralisa, o não empedra, o não endurece. Para mim o não traz algumas lágrimas e depois ele se transforma. Os nãos não são definitivos, assim como os sins. Na verdade nada é o que é. Tudo é como a gente vê. Existem as pessoas positivas e negativas. Os positivos sempre enxergam algo de bom, por maior que seja a merda feita. Os negativos, mesmo nas coisas fantásticas, procuram algo ruim. Eles são adeptos da frase "se tá tudo muito bem alguma coisa terrível vai acontecer". Tudo bem, a Lei de Murphy vive entrando sem ser convidada, mas a vida não se baseia na coleção de sins. Pelo menos a minha. Os nãos é que me fazem mais forte, mais centrada, mais preparada, mais, mais e mais.


Sempre falei que eu gosto dos defeitos das pessoas. Qualidades, pra quê? Pra ficar bonito e bem falado? Qualidade igual ou parecida com a sua eu aposto que mais de mil pessoas têm. Defeitos, hábitos pouco amigáveis, manias nojentas e derivados, eu duvido. Sei que ninguém fala isso, mas pra mim pouco importa o que dizem. Me importo com o que eu acho, se achei, tá achado. Sim, eu mudo de opinião. Sim, eu tenho dias péssimos. Sim, eu me dou nãos. Sim, já levei nãos e estou aqui, sardenta e valente. Só fujo de lagartixa.


Em alguns dias eu acordo com a cara amassada pela fronha de babadinhos floreados que tenho que usar porque a vó me deu e olho no espelho e vejo que o rímel foi parar lá no meu queixo e eu penso nossa, tô linda de morrer. Meu cabelo parece que foi mastigado pelo cachorro do vizinho e as olheiras certamente darão o que falar por mais de sete dias, sabe como é essa gente fofoqueira que não tem assunto. Em outros dias eu acordo com uma pele que daria inveja aos mestres do photoshop, um cabelo brilhosamente incrível e, acredite, eu só dormi quatro horas e quarenta minutos. Por sinal, já percebeu? Quando eu durmo 26 horas por dia é que fico com uma cara pálida, pareço de alguma tribo que já nem existe mais.


Sim, vou tirar foto. Certos dias do ano deveriam ser eleitos os Dias-Kodak. Qualquer olha o passarinho e você tá uma belezura. Em outros, gaste todos os clicks e a Passarolândia, pois fica uma tragédia brasileira. O braço sai do tamanho do Caminhão do Faustão. A bunda sai maior do que a da Mulher Melancia ou Mamão Formosa, sei lá o nome daquela uma que tem uma bunda do tamanho de um trem. Não, não, não, é melhor deletar tudo. Não, é melhor rasgar alguns álbuns antiguinhos.


Uma hora cansa bater na porta de quem não quer abrir. Pior ainda é bater palmas e gritar ô, de caaasa em dias de chuva sem guarda-chuva, com o scarpin mais alagado que São Paulo em enchente e com a porcaria da escova progressiva vencida. Mas quer saber? A nossa porta tem que estar sempre entreaberta. Joga a chave fora, não precisamos de cadeado, tranca, alarme, grade, sejá lá o que for. A gente tem que se abrir para o sim, para os sins.


O maior sim quem dá somos nós. Começa pela auto-estima. Sim, precisamos nos amar. Sim, temos que fazer o que gostamos. Sim, temos que crescer com responsabilidade, virar adulto sem perder aquele jeito brincalhão e inocente de criança. Sim, as crianças ouvem nãos mas desde pequenos sabem que o sim existe. Se ele não vem por conta própria nós precisamos ir atrás. Nem que seja à pé debaixo de neve.
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