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Salto alto - Magali Moraes


"Bem que ela leu em algum lugar que o ponto G da mulher é o cérebro. Foi só ouvir aquela frase para o sexo automático de uma noite de terça ser promovido a pura sacanagem:


- Não tira o sapato...


Como ela não tinha pensado nisso? Um fetiche assim, sem mais nem menos! A lingerie mais cara do mundo não conseguiria ser tão provocante no momento. Então o escarpim que ela usou um milhão de vezes, já levemente desgastado na ponta e com a borrachinha do salto precisando de conserto, ainda mantinha seu sex appeal. Quinze centímetros de prazer. Bico fino e sensual. Couro preto e devasso -- ih, será que era couro mesmo? Impossível não lembrar que o velho escarpim de guerra fora seu parceiro fiel em tantas reuniões chatas, nas rapidinhas até o supermercado, no enterro da tia Inês semana passada.


- Sério?


- Sério.


Hummm. O poder de um salto alto no imaginário masculino! Quanto mais o escarpim cobria seus pés, mais ela se sentia nua. Os dois ainda nem haviam iniciado os trabalhos e o seu cérebro já se contorcia todinho. Impressionante como uma terça-feira que começou com "tira os cotovelos da mesa" e "eu falei para tirar os pés daí" poderia terminar com um sexo tão gostoso. Cadê as crianças? E a louça para botar na máquina? Sei lá, essas preocupações só fazem sentido em um ambiente familiar, não no motel de beira de estrada em que o apartamento acabava de se transformar.


- Não tiro o sapato se você nunca mais tirar as mãos de mim...


Hummm. O poder de uma boa pegada. Olha só como a rotina e as contas vencidas atrapalham um relacionamento! Mãos para cá, bocas para lá. E ela pensando que nenhuma caixa de leite faltando na despensa tem o direito de afastar duas pessoas que se amam.


Hummm. Onde eles estavam mesmo? Transando como nos velhos tempos. E não é que ele continuava tarado? Ou sempre foi e o vazamento da pia, inacreditavelmente, havia desfocado sua atenção. Naquela noite, tudo era cama redonda: o braço retangular do sofá, o banquinho quadrado da cozinha, o teto da sala que refletia sombras como se fosse um espelho. Quando eles finalmente chegaram ao quarto, o safado do escarpim pisoteou as fronhas limpas, chutou os travesseiros, rasgou o lençol e -- sabe-se lá como -- acertou a dicróica da mesinha de cabeceira. Eles nem perceberam que o filho levantou, foi ao banheiro fazer xixi e voltou sonâmbulo para a cama. Nem perceberam que os vizinhos de baixo ouviram tudo. Dormiram já com a luz do sol espiando pelo buraco da fechadura. Amontoados num só lado da cama, como se a king size fosse um colchãozinho de solteiro. Que delícia acordar no outro dia e cada um juntar os braços e pernas que eram seus. O melhor de tudo foi na hora do banho, quando ela lembrou que as liquidações de sapatos estavam começando."



* O texto é da Magali Moraes. A Magali é escritora e publicitária, autora dos livros Buffet e Quem nasceu para cintilante nunca chega a francesinha. Momento-marketing-lê-que-vai-se-apaixonar: leiam, vocês vão se apaixonar.

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