Arrumações de cada um

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(em outras palavras: a gente sempre acha que a vida do outro é uma festa)






Perco tudo, sempre. É um procura-procura até achar a chave dentro da bolsa. Nunca sei em qual parte do mundo coloco os documentos que eventualmente preciso. Um dia decido organizar tudo: todos os documentos (aqueles que não uso sempre e que não podem morar na carteira, sabe como anda a vida: na próxima esquina você pode ser assaltado e, além de levarem a sua bolsa preferida, levam também as suas fotos preferidas, a sua identidade preferida, o seu CPF preferido, o seu título de eleitor preferido e é um inferno e uma fila sem fim para fazer tudo de novo) ficam em uma pasta bonita, de um rosa transparente e com uns adesivos de letrinhas enormes e coloridas escrito Documentos Preciosos. Pronto, que orgulho, que arrumação, que criatura organizada. Quando precisar é só ir ali e pronto, achou. Quem dera fosse assim! A pasta realmente existe, mas o CPF se encontra atualmente na terceira gaveta e o título de eleitor nem sei em que diacho de esconderijo foi parar. As eleições se aproximam, é melhor procurar, senão a velha cena fará parte do meu roteiro de domingo, O Domingo do Voto: acordo, tomo banho, me arrumo e sim, vou votar, a cidadã consciente cumpre o seu belo papel. Cadê a bolsa? Procura-procura, acha-acha. E agora é hora de conferir se o que precisa encontra-se dentro da bolsa (bolsa de mulher é um mistério, parque de diversões para homens entediados): cadê o título, meu Senhor? Procura-procura. Primeira gaveta, segunda gaveta, terceira, quarta e quinta. Nada. Tira a gaveta do lugar, tira tudo o que tem dentro da gaveta. Papéis vão se acumulando pelo chão, meu nervosismo vai tomando conta, pleft, começo a bater as gavetas. Desorganizada do cacete! Pasta de um rosa transparente com letrinhas coloridas coladas escrito bem grande e bonito: Documentos Preciosos. Pra quê? Começo a me xingar. Por qual motivo uma pessoa faz uma pasta para colocar o que precisa dentro da pasta se quando abre a pasta o que precisa não está dentro da pasta? Também não sei. Escritório. Gavetas do escritório. Primeira gaveta, segunda, terceira, quarta, olho o relógio, ai, uma hora e vinte e sete procurando a porra do título de eleitor. Cadê, cadê, cadê?!? Bato as gavetas do escritório, pleft, pleft, pleft, minha raiva é descontada ali. Volto para o quarto, cadê o raio do título? Me dá vontade de chorar, odeio perder as coisas, odeio ficar que nem barata-tonta-e-vesga procurando, sem achar. Então eu lembro que decidi fazer uma Caixinha de Documentos Preciosos e esqueci de avisar para a Pasta que ela ficou fora de moda. Lá dentro tem o quê? O título, bonitinho, gostosinho e me esperando. Pego o título e saio, feliz. Fim do roteiro.




Armário. Organizado por cores, fila do preto, fila do branco, fila do rosa, fila do colorido, fila do que não é creme, nem bege, nem nada, mas é tom pastel. Fila do roxo, fila do azul, só não tem fila do cinza, odeio cinza. Tudo enfileirado, empilhado, bonito de se ver, dá até gosto, como diz a minha avó. Pressa. Pega uma blusa e fica horrível, embola a blusa e joga lá dentro. Próxima, pode vir, fica estranha, atira no fundo, faz um efeito visual bacana no que antes estava completamente no estilo fila-indiana-das-cores-do-tom-mais-escuro-para-o-mais-claro. Um passinho mais pro lado, por favor, outra blusa que ficou nada a ver com a calça, então troca a calça e quando vê, ai Minha Santa das Arrumações, foi-se. Vira zona, melhor fechar a porta e nem ver o embaralhamento de filas, congestionou, uma se atravessou na frente da outra, tem que chamar alguém para colocar ordem no trânsito. O alguém, por óbvio, não sou eu. Pressa, saio correndo pra não olhar mais pra trás.




Papéis. Dá pra pular essa parte? Se bem que eu tenho um desconto, certo? Eu escrevo, isso justifica? Bom, tenho cadernos, blocos, caderninhos, bloquinhos, folhas soltas, grampeadas, folhas desquitadas, folhas viúvas, folhas solteiras e outras bem prostitutas. Tenho gavetas entupidas e resfriadas, estão sempre doentes, não há remédio que cure. Paciência. Se alguém tentar organizar eu certamente vou me perder, você sabe: não posso ficar procurando sem encontrar, pois vai me dando um nervoso e começo a distribuir pleft's. É melhor nós pularmos o capítulo dos papéis.


Bolsas. Descobri: o grande problema é trocar de bolsa, quando eu mudo esqueço de pegar o que estava dentro da outra. Fico louca procurando pela casa o cartão do banco, ai, perdi, e agora? E agora é só procurar dentro daquela bolsa que está pendurada ali no quarto. Ou então chamar o elenco do filme da Xuxa (incluindo os figurantes e a direção) pra me ajudar. De vez em quando me sinto morando no filme "Xuxa e os Duendes", pra quem não sabe: dizem que os duendes escondem as coisas da gente, eles acham bem divertido. Eu não acho nada divertido, que fique claro.



Brincos, tenho milhares. É bem verdade que uso mais aquele e aquele outro lá, mas é como tudo o que eu tenho. Calça, sapato, bolsa, a gente sempre tem aquele melhor amigo, o ouvinte, o parceirão de todas as horas. Mas eu organizo os brincos, cada par juntinho em sua casinha, ops, caixinha. Olha que beleza: quando quer é só abrir a gaveta, pegar a caixinha e pronto, a dupla pula direto para as orelhas e fica tudo numa boa. Seria lindo se fosse assim. As caixinhas se encontram na gaveta, mas os brincos estão sempre passeando, saracoteando por bolsas e chão e mesas e eles adoram se esconder embaixo da cama também, não sei o que existe lá de tão interessante. Bom, qualquer hora eu enfio a cabeça lá embaixo pra descobrir, aí conto pra você.




Eu sou organizada. Por favor, não ria. Sou muito organizada na casa dos outros, leia-se: casa da vovó, casa da titia, casa da amiguinha, casa do namorado, afinal, mamãe me deu educação. Me comporto bem, lavo a louça, arrumo a cama e não faço bagunça. Ganhei uma estrelinha? Não sei o que acontece comigo, é tão mais fácil ser organizada na casa do outro! Eu deveria me comportar como se estivesse na casa do outro na minha própria casa. Ia ser um brinco. Ou um par deles, mas não dos escondidos embaixo da cama, tá? Falo daqueles comportados que não saem por aí sem pedir a minha autorização.




Então eu olho para a vizinha, aquela, a do lado. Ela tem a mesma idade que eu e tem um cachorro, um filho e um marido. Você sabe que ter um filho dá trabalho, soma dois cachorros e já viu, cansaço total. A vizinha é organizada, o carro dela está sempre lindo e brilhando, o cabelo dela está sempre limpo e brilhando, as unhas dela estão sempre lindas, ela nunca sai de casa com cara de procurei-qualquer-coisa-por-muitas-horas e eu duvido que ela perca o título de eleitor ou bagunce a gaveta das calcinhas. Du-vi-do! Ela não tem cara disso. E mais: o filho dela é uma peste e mesmo assim ela está sempre sorrindo. Quando eu acordo naqueles dias péssimos coloco o óculos de sol e não falo com ninguém, fone no ouvido e sai-que-não-vou-conversar. O guardinha da rua me dá um bom dia e eu só faço um gesto com a mão e tchau, meu filho. A vizinha não, ela distribui sorrisos doces pela rua e até para as beatas que vão ali na igreja. Ela sai pra passear com o pestinha que não é ranhento e com o cachorro (ao mesmo tempo, como consegue?) e nunca está correndo, nunca está descabelada, nunca está atrasada, nunca está com cara de quem dormiu demais ou de quem não pregou o olho a noite toda. E quando ela sai com o outro cachorro, no caso o marido, é a mesma coisa. Que casal feliz, sempre conversando, sempre de mãos dadas, sempre cheios de fogos de artifício no olhar. E o jardim da vizinha está sempre em dia, nunca tem uma erva daninha sequer! Por quê?




A vizinha não existe, é uma amiga imaginária que eu criei para tentar me convencer de que deve ser uma chatice do caralho ter uma vida toda perfeita e nos trinques. Prefiro a minha, é sempre um engarrafamento e tem um monte de gente buzinando, mas aprendi a me fazer de surda. De muda também. E de cega. Sabe como é, tem que ter o rebolado, pois o importante é a diversão, mesmo que você tenha que bater as gavetas de vez em quando.




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