Colateral

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Há algum tempo atrás me perguntaram como são curadas as cicatrizes deixadas por amores que não foram. Não foram felizes. Não foram decentes. Não foram perfeitos. E, pra completar, não foram embora. Eu, com sabedoria de bolso, falei que nada é perfeito e que tudo um dia, querendo ou não, sara.
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Sei que quando você está sofrendo você está sofrendo. Nada que é dito salva, nenhum livro ajuda, férias em Dubai não são proveitosas, os trinta e nove pacotes de lencinhos de papel não dão conta do recado. Eu sei, já sofri. Quem nunca sofreu por alguém, por favor, se retire do ambiente. E clique no X situado na parte superior da tela, lado direito. Você que continua aqui, por obséquio, preste atenção.
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Um dia eu fui a Mártir Do Amor. A Grande Deusa Da Desilusão. A Diva Do Ressentimento. É, eu achava que era a única pessoa no universo que possuía dor de amor. Os amigos falavam e eu dava de ombros, eles não sabiam nada. Meu passatempo predileto era pensar meu-deus-do-céu-tem-tanta-gente-ruim-no-mundo-e-são-felizes-e-corados-e-bem-amados-qual-é-o-meu-problema? Olha, não tenho a resposta certa na hora exata, mas tenho A Resposta. Veio tarde, mas veio. Se você ainda estiver me lendo se ajeite na cadeira, lá vem história.
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Encontrei um cara que era lindo e perfeito e cheiroso e gostoso e tudo de bom e tudo o que uma mulher quer. Ele me tratava de formas não-lindas e não-perfeitas e não-cheirosas e não-gostosas e nada-boas e nenhuma-mulher-por-mais-vaca-que-seja-merece-isso, nem em pesadelo. Só que eu gostava dele. Você já deve ter conhecido um tipo assim. Puro encanto. Palavras bem ajustadas, sedução em pequenas doses, uma pitada de graça (acho que toda a mulher adora o homem-que-faz-rir), pequeno ar cafajeste e inteligência na medida. Além do charme, desenvoltura, sorriso bonito, elegância e um tom despreocupado. Sinais. Homem com pequeno ar cafajeste em geral acaba se revelando o Rei Da Cafajestagem. E o tom despreocupado se revela não-dou-a-mínima-pra-você-benzinho. Mas nada disso importava, o encanto era de outro planeta e ele tinha uma expressão no olhar atraente ao cubo. Então eu me apaixonei louca e perdidamente. Não via mais nada na frente, só o Rei do Encanto. Ele me deixava esperando, ficava com outras mulheres, era insensível, grosseiro e mentiroso. Desconfie de homens que se ajoelham e usam o por-favor-não-me-deixe. Isso fica bem no cinema, na vida real é coisa de galinha que usa a máscara do arrependimento. Pisar na bola todo mundo pisa; arrependimentos têm que ser sinceros. É muito difícil descobrir até que ponto uma pessoa diz a verdade, somos um, não somos ela. E os olhos enganam. Os gestos também. Não esqueça: existem atores. Péssimos, mas ainda assim atores. Por trás deles, personagens. No plural pra ficar bonito e dar a sensação de mais. Mais armações. Mais caras e bocas e trejeitos. Mais ilusão. Mais chora-minha-filha.
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Curto-circuito. Aconteceu, não me pergunte como. Um dia a ficha caiu, levantou e me disse acorda! Mandei a ficha embora e ela puxou o meu pé. Parei pra pensar: mereço? Não. A resposta era clara, meus sinais é que não eram evidentes. Eu via muitos defeitos e ainda assim o achava o cara perfeito. Perfeito pra quê? Pra acabar com a minha auto-estima, só pode. Porque ele tinha o dom de me colocar pra baixo. Eu devia ser. Devia ser mais adulta, devia ser mais independente. Devia ter dado um chute no traseiro dele, isso sim. Quem acha que o outro deve-ser não gosta do outro como ele é. Só que eu estava dormindo, sei disso. Acordei com a ficha-puxadora-de-pé. E dei um basta, adeus. Só que eles voltam. Homem-fantasma, não é o Gasparzinho, nada tem de camarada. Voltou, voltei. Foi, fui. Voltou, fiquei. Voltou, enjoei. Uma hora você cansa do que não merece.
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Eu estava exausta. Cansada de paixões meia-boca. Enjoada de sair dando o coração pra qualquer mendigo. Caridade com o coração é que nem feitiço: vira contra o feiticeiro. Cansei, mas gostava dele. Passei um tempo me recuperando, ouvindo música brega, pentelhando a minha gente, escrevendo semi-poemas de corno. Não basta estar sofrendo, é preciso criar clima. A música certa, as lembranças pontuais. E eu achava que o mundo conspirava contra mim. Que todas as pessoas no mundo estavam rindo enquanto eu estava acabada e bêbada. Você sabe, é preciso afogar as mágoas em algum copo. Ou garrafas. Todo mundo passa pelo Tratamento de Passado. É preciso lembrar, reviver, chorar, rechorar, esgotar a fonte, invocar a Deusa da Cura e esvaziar o coração, nem que a gente jogue o que restou dele pela janela (alguns casos são aceitáveis, mas não coloque papel de bala no meio da rua).
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Alguns me diziam que o tempo curava. Outros me recomendavam um novo amor. Novo amor? Ninguém tem o sorriso dele, o jeito que ele fala ninguém tem, no mundo não tem um exemplar como aquele, eu quero ele, eu preciso dele, não vivo sem ele. E o tempo você enfia sabe aonde. As pessoas adoram falar do tempo. O tempo fecha as feridas. Ah, dá um tempo! Quando você está grandiosamente ferrada não quer saber de tempo, quer soluções a jato e, de preferência, a pessoa de volta. Ajoelhada, numa noite estrelada, com uma flor na mão, lágrima no olho, olhar honesto e meu amor, me perdoa, te quero pra sempre, você é a razão da minha vida. Uma leve brisa e a sua música romântica preferida. Por isso que irrita tanto quando falam que você fica melhor sem ele, que ele não presta, que vai passar, que tudo é aprendizado, que não era pra ser, que você vai encontrar o Antonio Banderas Brasileiro, que você é muita mulher pra ele.
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Você entra numa neura sem fim. Está amargurada e precisa descobrir se o tratante está feliz. E ele e-s-t-á. Ou você pensava que ele andava de bar em bar, sem banho, barba por fazer, demitido, acabado, contando que perdeu a mulher da vida dele para a terapeuta? Ele está curtindo a noite, rindo com os amigos, beijando muitas bocas-sem-nome, levando muitas mulheres-por-uma-noite pra casa e aquela sua foto que decorava a mesa que você odiava foi parar no lixão mais próximo. Sim, ele está tocando a vida. Trabalhando, bebendo socialmente, passando loção pós-barba, tudo muito bem, obrigada. E você nem preciso dizer o estado em que se encontra. Mulher quando sabe que tem que virar a página deixa ela dobrada. Sabe como é, quando ninguém vê vai lá e dá uma espiadinha. Além de virar Detetive. Você sabe os passos dele. Ele nem sabe se você ainda mora na mesma rua.
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Passou muito tempo, tanto tempo que eu nem lembrava mais que ele existia. Nós nos vimos, ele está mais velho, um ar de cansaço emocional. Procurei os meus motivos, não achei. Ele foi um dia o homem mais perfeito do mundo? Foi. E eu devia estar louca. Por sinal eu devia ser enjaulada. Sou um perigo, me engano demais. A paixão cega e faz com que muitas vezes a gente pense que ela é amor. Não é, amor é muito diferente. Fiquei impressionada, como achei que aquilo era um homem e que ele merecia meia lágrima?
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Sabe como são curadas as cicatrizes deixadas por amores que não foram? Desculpe, mas só o tempo. E agora eu deixo uma pergunta pra você: como pode alguém que um dia foi tudo se transformar em nada?
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