Coisas da gaveta II

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É um pouco difícil romper com certos padrões. Você nasceu, sua mãe lhe disse para não colocar o dedo na tomada, pois dá choque. Seu pai lhe ensinou a amarrar o tênis. Sua avó lhe explicou como se passa fio dental nos dentes. Além dos ensinamentos obtidos em casa, você observa o mundo, as pessoas, os acontecimentos e, a partir daí, começa a formar opinião. Quando pequeno, o seu pai lhe levava até a igreja mais próxima, missa aos domingos. Um dia você pára e pensa se realmente gosta de assistir uma missa em um domingo de manhã. Não, você não gosta. Prefere ficar dormindo. Prefere caminhar no parque com o seu cão. Acha que para entrar em contato com Deus não é necessário estar na casa Dele e, pode, inclusive, rezar tomando banho. É você se impondo, dizendo e agindo da forma como quer, é escolha, é opção.

Acho fantástico o comportamento humano. Somos, ao nascer, uma caixa gigante vazia. Com o passar dos dias a caixa vai recebendo material: recortes de jornal, bilhetes, envelopes com adesivos graciosos, cartas, extratos bancários, exames médicos, fotos dos principais momentos, artigos de revista, certidões de nascimento, infância, adolescência, adultez. Uma caixa que vai adquirindo material, peso, consistência. Um dia, por um motivo qualquer, precisamos abrir a nossa caixa interna. O que nos aguarda? Surpresa!

Olhar para si mesmo é um exercício dos mais penosos. E você ainda fica com dor muscular, tamanho o esforço que faz. Em muitas situações precisamos deixar o orgulho de lado, dar uma trégua para o nosso defeito mais gritante, não é simples quebrar e jogar no lixo certos padrões de comportamento. Sim, nós desenvolvemos padrões. Eles surgem de qual forma? Simples, a vida faz com que eles apareçam. Os momentos, os aprendizados, as circunstâncias, as experiências, as frustrações, os planos-que-não-deram-certo. E todas as coisas boas e intensas e gostosas e fabulosas e incrivelmente excitantes que aconteceram na sua vida. Tudo gera um padrão, uma forma, um quê no modo de reagir, se portar, viver, responder, articular conversas e ações.

Eis que aparece, do nada (já percebeu que muito surge do nada?), um novo acontecimento na sua vida. Algo diferente, sem explicação, totalmente inédito. E bom, muito bom. Ótimo, muito ótimo. Tão perfeito que te deixa boquiaberta. Mas o tal padrão começa a bater na porta da sua garganta e insiste em marcar presença. Você não o quer, mas ele é insistente. E te domina. E faz com que você tenha atitudes e palavras e comportamentos antigos. Aqueles que você odiava. De proteção, medo, angústia, aflição. E você se sente em um filme de suspense, com aquelas trilhas que fazem ahuuuu, ahuuu. Vento que assobia, janela que bate, cortina que balança, barulho na madrugada, você que desce pra ver o que está havendo, afinal, é mulher bem mulher e não tem medo de nada. E desce as escadas, naquele misto de valentia e medo e coragem e pavor, pois é mulher muito mulher e tem que ver o que está acontecendo. Chegando lá, você nem sabe se era lá mesmo, mas tem um espelho a sua espera. E no espelho você se enxerga. A imagem que reflete é a sua, um pouco descabelada e tensa e na imagem alguém aperta o botão do play e flashes da sua vida começam a aparecer e desaparecer devagar, fazendo com que você se pergunte para onde está indo. Porque a gente sempre se pergunta para onde vai. De onde veio. O que fazemos aqui. E você não descobre nada disso, vê que não era nada, apenas o vento revoltado. Volta para a cama, fecha o olho, vira para os dois lados, vira de costas, de barriga pra cima e vira-de-tudo-que-é-jeito e nada do sono surgir.

O tempo caminha e você torce para se livrar daquele padrão que insistiu em grudar no seu pescoço. Mas não adianta torcer, tem que fazer esforço, afinal, nem tudo é como foi. Você não pode achar que o passado vai sempre influenciar a sua vida, as suas relações, os seus sentimentos. O que foi, foi. O que é, com a sua ajuda, vai ser. Lembre sempre disso. Anote no espelho. Faça de mantra. E viva o agora, nem que tenha que estapear os padrões de comportamento.

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