Revoltas, aspirinas e reviravoltas

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Pode, não pode. É assim que as coisas andam: pra frente ou pra trás - e ai de você se pensar diferente. Quando eu era pequena meu pai dizia que comer salada era importante e fazia bem, que salada era a oitava maravilha do mundo. Eu achava salada muito ruim e volta e meia burlava o sistema: dava para a querida Baloo (uma boxer tigrada que acompanhou minha infância e era minha defensora contra os perigos do mundo) comer tudinho. Ou então para a Wania, que trabalhava lá em casa, ela me viu nascer e é minha segunda mãe. Ninguém falava nada, bico calado. Comeu, filha? Comi, pai. Salada é importante, faz bem e é a oitava maravilha do mundo, como não mastigar sorridente essa delicinha? Meu problema não era a salada em si, mas alguns componentes do prato, mais especificamente tomate e pimentão. Gosto de molho de tomate, mas rodelinhas de tomate gaúcho me dão arrepio. Pimentão eu não suporto. Por que esse papo culinário? É apenas uma ilustração pra dizer que nem sempre na vida a gente faz - e come - o que quer.


Para uma criança comer salada é um sufoco, existem coisas melhores, tal como hamburger e batata frita. "Desliga a televisão e vai dormir!", dessa eu não tinha como escapar. O fato é: sempre tive meus métodos para convencer o inimigo. Um choro na hora certa, uma palavra apropriada, um olhar ai-deixa-eu-brincar-ali-na-rua, coisas assim. Não fui exatamente uma criança mimaaaada, mas fui uma criança mimada, se é que você me entende. Não lembro de querer alguma coisa e não ganhar. Tá, eu lembro: minha tia certa vez deu um periquito para a minha prima, eu pedi e ela não me deu. Até hoje, vê se pode! Mas a minha avó me deu, anos depois. A Maldição Do Periquito. Ele chegou lá em casa pequeno, indefeso e...bichado! Menos de 24 horas depois o bichinho morreu, aí a vó me deu outros. Isso, outros, era um par, um casal. Adorei, me encantei...por um período. Quem tem periquito sabe que eles fazem uma zona, acordam sempre de bom humor, cantam e deixam a gente com um humor horrendo. Imagine ser acordada às 6 da manhã todos os dias com os felizes cantadores? Fora a sujeirama que eles fazem, tragédia grega total. Depois de algum tempo - e sem nenhum pesar - dei os benditos para uma faxineira. Parece que eles ainda vivem bem e são felizes.


Não lembro de ter passado trabalho na vida, muito menos necessidade. Fui uma criança feliz, bem amada, tinha amigos, fazia uma baguncinha saudável (tipo escrever nas paredes do banheiro do colégio), era um ser aparentemente normal, mas nunca, nunca lidei bem com "nãos", por isso dava um jeito de deixar a coisa com o meu toque, meu gosto, meu, meu. Nunca fui egoísta, não pense que eu era uma criança insuportável, nada disso. Eu era meiga, carinhosa e continuo sendo. Mas eu era mimada, entenda. Eu era mimada. Eu queria mandar em todo mundo, coordenar as brincadeiras e o pior de tudo é que sempre contei com uma legião de súditos que pareciam não se importar em ganhar ordens. Ou era isso ou ia pro sótão escuro e levava cinco mil chibatadas. Então tá. Virei adolescente e aí um menino me deu um fora e meu deus, foi o fim do mundo. Como assim? Co-mo? Entendi que nem tudo é do meu jeito.


Nunca tive muitos problemas com o sexo oposto. Não que eu fosse a Rainha da Turma ou algo do gênero, mas nunca tive muitos problemas não. Só que, como boa mimada, eu era volúvel. Me apaixonava, sofria, chorava, ouvia Love Songs (um programa que dava numa rádio aqui em Porto Alegre, nem sei se ainda existe. O locutor, Arlindo Sassi, lia cartas de amor dos ouvintes e as músicas eram de primeira linha, tudo coisa chique, minha filha!) e apertava meu Snoopy contra o peito, ai, que vida cruel. Eu ouvia Love Songs e botava pra chorar. A minha paixão durava seis meses, com direito a colinho de mamãe, cafuné e conselhos. Reunia minhas amigas, o assunto era sempre o mesmo: o rapazote da vez. Eu tive a fase de playboyzinho, bad boy, descolado, vagabundo, pinguço, drogado e, como boa observadora do comportamento humano, eu conheci todo tipo de gente, inclusive os com namorada, noiva e mulher. Lógico que os cafajestes fazem parte da lista, pois todos que tinham "acessórios" nunca me disseram claramente "eu tenho outra pessoa", eu (com meu faro Clarissa Holmes) descobria. Mais seis meses arrasada, me recuperando do trauma, ouvindo Caetano Veloso, Adriana Calcanhoto, Marisa Monte e até Odair José, sabe como é, para sofrer tem que ter trilha sonora.


Eu nunca soube dizer não, talvez por gostar tanto do "sim". Sim é uma palavra bonita. Sim, é uma palavra bonita. O que o padre fala na hora do casório? Fulano, aceita fulana como sua legítima esposa, promete amá-la e respeitá-la, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte os separe (não lembro se ainda é assim o discurso do padre, mas no tempo da minha mãe era)? "Sim", dizia o feliz fulano. Eu adorava aquela parte, nos filmes, em que o padre perguntava se tinha alguém contra o casamento. Que fale agora ou cale-se para sempre. Suspense total. Eu gostava quando chegava um penetra e dizia "eu". Você não pode casar com ela, eu te amo Mercedes! É, sempre fui chegada numa cena dantesca e maria do bairresca. Aprendi, depois de muito tempo, a dizer não. Confesso que simpatizo mais com os sins. Dizer não é difícil. Dizer sim também é, eu sei. É que o sim tem cara de renovação, sinto um cheiro de reviravolta com os "sins". Os nãos são fúnebres, pelo menos pra mim. Dão dor de cabeça e revolta.


Dizer não sempre me doeu. Acho que foi por isso que eu vivi dizendo sim. Sim pra vida. Sim pro amor. Sim pra proteção. Então eu vivi, por muito, protegida, longe dos nãos que a vida dá. Hoje a vida me enche de nãos e eu sou feliz com eles. Porque hoje eu me dou sim, mesmo que ela bata a porta na minha cara e diga "nunca mais te quero aqui!". Eu disse não para a proteção, o que é algo muito, muito complicado. Todo mundo quer um colo quente, uma mão estendida, além de casa, comida e roupa lavada. Mas não dá pra ser protegido pra sempre. Eu dizia muitos sins, queria me apaixonar. Ontem reli um texto que eu escrevi em 2007. Deixando a modéstia bem longe, olha, é um lindo texto. Belas palavras, um texto doce, mistura de gosto bom com alguma saudade e umas gotas de tristeza. O texto em si era direcionado pra uma pessoa que, bem, eu achava que gostava muito. Ontem eu reli, com olhos de leitora. Achei bonito (modéstia, continue longe, por favor), mas mentiroso. Eu não sabia nada de sentimentos, na verdade naquela época eu nem tinha nascido ainda. Aquilo tudo era o que eu queria sentir. Queria que existisse um sentimento assim. O interessante, na vida, é a capacidade que a gente tem de dizer sim pra um não. Uma coisa é inexistente, mas queremos tanto que viramos mágicos, criamos uma situação. Lendo o texto tudo me pareceu tão irreal, distante, impuro. E foi assim durante 27 anos da minha vida. E é assim pra, infelizmente, 98% das pessoas que eu conheço. As pessoas querem tanto sentir, querem tanto um alguém que tome conta, embale, traga proteção, abraço, beijo na boca, cheiro bom, dormir apertado contra o outro, as pessoas querem tanto um amor livre de impurezas que acabam despejando todas as fantasias em cima de um qualquer, um qualquer minimamente decente, uma qualquer situação que tenha um por cento de chance de dar certo. Às vezes dá. Às vezes o qualquer vira um amor. Às vezes o qualquer vira mais um. O que me entristece é ver as pessoas insistindo, recebendo migalhas, zero vírgula zero zero zero zero cinco de atenção. E elas se apegam nisso, vislumbram algum futuro numa relação não sadia. É triste ver as pessoas carentes se agarrando em um baú de ilusões.


No ano passado virei um bebê, uma recém-nascida. Digo isso de peito aberto e felicidade no olho. Conheci o que era um sentimento, é por isso que quando reli aquele texto fiquei com alguma coisa entalada na garganta: aquilo que eu achava que sentia nunca foi verdade e não é nem 10% do que eu sinto hoje, que sei o significado real de sentir amor por outra pessoa. Eu sei que estou falando em porcentagens, sins e nãos. É que eu renasci ou nasci, como você preferir chamar. O nome não importa, as pessoas têm uma mania de nomear as coisas. Pra quê? Por que nomes, se o que importa é se descobrir? Pra gente sentir não precisa de nomes ou porcentagens, muito menos ficar insistindo numa coisa que, no fundo, não é nada, a não ser pura e desgostosa ilusão. Todo mundo quer conhecer o amor. Ele se apresenta para poucos - e sortudos, mas entenda que o amor não dói. E quem nos ama obviamente quer ficar com a gente (sem desculpas, por melhores que sejam). Independente dos nossos sins. Ou nãos.
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