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Sonhei que eu tinha te perdido. Na verdade, não lembro direito, o sonho às vezes embaralha a realidade da gente. Não sei mais se sonhei que tinha te perdido ou se a gente, no sonho, se perdeu um do outro. Também não sei te confidenciar o que é pior: você se encantar por outra pessoa e passar a amá-la, desejá-la, venerá-la ou o nosso amor parar de respirar, morrer - sem dor. Se é para morrer, que seja um ataque cardíaco fulminante, parada respiratória, um acidente cardiovascular irreversível. Tudo bem rápido, tipo Miojo, três minutos e nada mais, certeiro, tiro e queda, sem dor, morte morrida, natural, coisas da vida. Meu avô morreu dormindo e, dizem, não sentiu nada. Que seja dormindo, então.
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Por mais saudável que seja um sentimento, ele pode morrer a qualquer instante. Exercício faz bem, uma dieta rica em fibras, frutas e ômega 3 também, mas nada garante que um amor morra de velho. Check up de tempos em tempos ajuda a prevenir doenças, é claro. Muita água, para hidratar. Nada de sair com o cabelo molhado e pegar sereno, a vó já dizia. É bom ter um cuidado extra com a saúde, então.
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Você pode passar a vida se cuidando e um (não tão) belo dia um carro atravessar a avenida a mil por hora e te acertar em cheio. A ambulância pode chegar rápido, o trânsito pode estar tranquilo, mas você pode não resistir a caminho do Hospital Pronto Socorro. Pronto, morreu. O pior é sentir dor. Você sabe que não tem cura, é fatal e, ainda assim, sofre. Dores alucinantes, remédios fortes, cama de hospital, cheiro de hospital, comida de hospital, morfina. Você em decomposição. Dia após dia, nova dor, mesmo foco, nova da mesma. Você vai perdendo, sempre. A sanidade, os cabelos, o movimento. Se torna um vegetal, com um pingo de consciência. E nesses curtos momentos conscientes, dor. É tudo o que resta. Pronto, emoções dilaceradas.
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A vida não tem nota fiscal. Não adianta reclamar, não. Um dia outro alguém pode aparecer e você se encantar. O nosso relacionamento pode estar chato, em crise, em fase de baixa, enjoativo ou rotineiro. Não importa, em um momento assim você pode vacilar, baixar a guarda e pronto, surgiu uma paixão na fila da padaria. Eu posso pedir, chorar, explicar, mostrar nosso porta-retratos, nossos álbuns, cartas, posso montar um museu com o nosso passado, colorido, em preto e branco ou sépia. Nada vai te convencer. Você vai arrumar a mala, sair por aquela porta e passear aos domingos com a nova paixão, aquela da padaria. Eu vou ficar por aqui com as nossas lembranças e um gosto estranho do nunca-vou-amar-de-novo-nem-vou-tentar-porque-quando-o-amor-da-vida-da-gente-vai-embora-é-impossível-amar-outra-vez. Pronto, acabou.
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Eu, talvez por ser mulher, talvez por ser humana, talvez por ser eu e isso, você sabe, é dose dupla, quiçá tripla ou quádrupla, é dose que embriaga e deixa de ressaca, eu ainda prefiro que o seu amor morra, desapareça que nem gaivota no horizonte. Não, não sei. Talvez eu retire o que acabei de escrever. Talvez seja melhor você se apaixonar por outra, pois aí terei na manga uma justificativa. Não, peraí, se for assim vou pensar nos motivos pelos quais você me t-r-o-c-o-u. Era mais bonita, gostosa, inteligente, divertida, sorria mais graciosamente, falava mais baixo, tinha piadas mais engraçadas, não era tão irônica?
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Quer saber? Esquece, foi um sonho. Por que a gente dá tanta bola para um sonho? Dicionário dos Sonhos, Livro dos Sonhos, Tudo dos Sonhos. Consultas mil, é como se o livro com o significado fosse uma cartomante com olhar enigmático dizendo "isso vai acontecer", "isso não vai acontecer". Sonhos são importantes, mas viver é muito mais. Ao invés de ficar pensando nos seus significados, é mais fácil levantar e viver a vida, afinal, ela pode ser muito curta. É por isso que ao invés de ficar aqui no sofá escrevendo sobre coisas que nem sei, vou me enroscar com você na cama e te ver dormir. Para quando você acordar, eu sorrir e dizer que você dorme bonito.