Apenas um conto

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Ela chegou em casa apressada como sempre. Entrou na sala e já foi tirando os sapatos, o som do salto no piso laminado não estava soando bem naquela noite. Ligou o chuveiro e colocou o CD preferido. Sentindo a água quente ardendo nas costas, pensou naquele dia. Meu Deus, que dia. Muitas coisas circulando no corredor da mente, quando a gente olha pra trás sempre traz um pedacinho do que ficou nas mãos. Aquele banho era uma espécie de libertação, que a livrava de qualquer sentimento de culpa. Por que a gente se culpa tanto?, pensou. Se enrolou na toalha e parou na frente do espelho. Meus olhos estão cansados, percebeu. Minha pele não tem vida, deduziu. Ouviu o barulho da chave na porta e sorriu.


Eles eram casados há oito anos. Nunca haviam casado de fato, na igreja, de véu, grinalda, padre e festa para os parentes falarem mal do vinho barato e as invejosas fazerem fofoca ao telefone a respeito do modelito da noiva. Viviam juntos e se davam bem. Ele era bom pra ela, ela amava ele. Tinham desavenças, como todo casal. Brigavam, como qualquer ser humano. E se entendiam. Haviam prometido nunca dormirem brigados. Se resolviam antes de deitar a cabeça no travesseiro e deixar o corpo lado a lado, mesmo que tivessem que ficar debatendo assuntos desagradáveis até às 5 horas da manhã.


Ela colocou uma roupa confortável e foi para a cozinha. Ele levou o cachorro para passear e foi tomar banho. Tão envolvida nos pensamentos, nem percebeu que ele estava por perto. Eu adoro observá-la, disse ele enquanto ela tentava salvar o arroz. Ela mordeu o canto da boca, seus olhos procuraram algum deslize da faxineira e só conseguiu dizer "você faz com que eu me sinta nova".


Tinha um sorriso pálido, jeito de quem tem os sentimentos empoeirados pelo que não chegou a ser. Por que então você esconde uma tristezinha no canto da boca?, ele quis saber. Ela sentiu um incômodo e quis disfarçar. Ele era o homem perfeito para ela, se é que existe uma pessoa perfeita para a outra. Inteligente, charmoso, cheio de vida, interessante, de boa índole. Era romântico, entendia as doses de loucuras femininas e tinha bom gosto. Mas não queria filhos. Não gostava de crianças, só de animais. E ela era louca para ter um bebê. Se limitou a dizer que só queria fazer sentido para alguém e ter um ou dois segundos de importância neste mundo maluco e desajeitado. Ele disse que ela era o que mais fazia sentido pra ele. E pro mundo. Pra deixar de ser boba e pensar besteirinha, que isso devia ser TPM ou algum stress no trabalho. Se preocupou, ela andava trabalhando demais. Era diretora de uma revista de moda e dava aulas na faculdade. Tinha uma vida corrida, andava exausta, precisava de férias, mas há um mês havia mergulhado ainda mais no trabalho. Quase não parava em casa, chegava tarde, evitava ficar perto dele, tinha medo de desabar, deixar o segredo sair pelos poros.


Ela achava bonito o olhar dele. A lente daquele óculos a conhecia tão inteira, encaixada, completa, serena. Jantaram. A comida ficou entalada no coração dela. Ela iria morrer com aquele segredo, não tinha jeito. E se ele descobrisse? Certamente não guardaria aquele remorso junto com ela. Melhor assim, pensou, é melhor assim. Ele detesta choro de bebês. E eu vou viver com essa culpa, esse tormento? Essas dúvidas desfilavam na cabeça dela, ao som de aplausos de uma platéia imaginária, que condenava o ato. Ela estava sozinha, nenhuma amiga sequer sabia do que tinha acontecido há um mês atrás, enquanto ele viajava.


Suspeitou. Havia trocado de pílula, o ginecologista disse pra usar preservativo. Esqueceu, esqueceram. Um dia, enjoo. No outro dia, idem. Era o perfume dele que causava aquele embrulho. Mais um dia, enjoo. Teste de farmácia. Exame de sangue. Sim, era verdade. Ela calou, nem pensou em dizer ou ensaiar um vamos-ter-você-vai-ver-como-é-bom. Simplesmente enterrou um sonho antigo junto com o filho que nem chegou a se mexer dentro dela.


"Eu gosto da forma como você me olha, parece que sou um sonho bom", ela escreveu em um bilhetinho. E rasgou. No outro dia, ele encontrou pedaços do papel no chão do quarto. Mas ela já não estava mais ali.
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