Para a minha avó

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Sei que escrever este texto vai ser doído, pois quando falo nela sempre me emociono de uma forma incontrolável, mas preciso te contar sobre a minha avó. Sinto uma saudade dela que foge do meu alcance. E uma enorme culpa por não poder vê-la todos os dias. Ela mora em outra cidade e não tenho o tempo livre que gostaria para visitá-la a hora que eu bem entender. Você precisava ter conhecido a minha avó. Quem já conviveu com ela sabe o quanto ela era especial, doce e brincalhona. Por que eu digo "era"? É que agora ela, apesar de ser ela, deixou de ser quem era. Para você que chegou agora e não está entendendo nada, explico: minha avó teve um AVC no começo do ano.
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Sinto falta do meu avô. Da voz e do jeitão dele, que vivia repetindo as mesmas histórias na hora do almoço. A gente se implicava, brigava, mas ele era bom sujeito. Meu lado chato e implicante é igualzinho ao dele. E isso muito me preocupa, pois quando ele queria era bem, mas bem chato mesmo. Mas ele era bom de coração, isso vale muito. Tem uma frase dele que nunca vou esquecer. "Vai lá e fica com a tua avó. Às vezes, eu fecho os olhos e vejo ela entrando por aquela porta". Ai, só de lembrar eu me arrepio. Para você que não está entendendo nada, explico: meu avô, ao ver a minha avó tendo um AVC, teve um infarte. Foi para um hospital, ela para outro. Ela estava na UTI, inconsciente. Ele estava no quarto, consciente, bem, esperando para fazer cirurgia (safena). Quando ele disse essa frase, não sabia da real situação da minha avó, só sabia que ela estava em outro hospital, tinha tido um AVC, mas estava no quarto. Mentimos para ele. Então, ele disse isso. Saí do quarto chorando e fui ver a minha avó. Entrei na UTI no horário de visitas e não consegui me segurar. Quem já passou por isso sabe como é difícil. Minha avó, depois de alguns dias, saiu do hospital, foi para a casa nova (eles iriam se mudar) e faz fisio, fono, tudo que tem direito. Meu avô fez a cirurgia, foi para a recuperação e de lá nunca mais saiu. Ficou 9 dias internado, tentavam tirar os tubos, mas ele não respirava sozinho, teve infecção e morreu. Ele nem chegou a morar no novo apartamento, nem chegou a ver a minha avó. Deve ser difícil morrer sem ver pela última vez a pessoa que a gente ama. Aquele dia, quando ela teve o AVC, ele não sabia que seria a última vez que a veria. Se soubesse, teria dado um abraço mais forte, se desculpado por algumas coisas, dito pela última vez eu-te-amo-nega. Ele chamava ela de "nega". A vida não podia impedir as despedidas. Muito menos levar os amores assim, como uma rajada de vento. Às vezes, ando na rua e vejo velhinhos de cabeça branca e barrigudinhos parecidos com ele. Uma vez eu até me confundi, fiquei olhando tanto que o vovô deve ter achado que eu estava dando mole. Às vezes, sinto ele perto de mim. Não entendo muito bem o motivo, mas sinto.
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Dele, sinto saudade. Mas entendo que tudo tem seu ciclo. A gente nasce, cresce, vive, aprende, desaprende, cumpre a sua missão e parte. Entendo a partida dele. Sei que este ano-novo vai ser diferente. A data era importantíssima para o meu avô, que gostava de reunir toda a família e achava a união uma coisa essencial. Este ano, vou passar longe da família. Para mim a data perdeu o sentido, se bem que já fazia algum tempo que os finais de ano não eram tão alegres quanto antigamente. Antes, era uma diversão. Eu e meus primos fazíamos a decoração da garagem. Era tudo muito planejado. Depois, a coisa foi se perdendo. Será que com o tempo tudo vai se perdendo? Não sei, acho que só os amores sobrevivem. Até que um belo dia a vida tira bruscamente uma coisa de nós. Foi o que aconteceu com a minha avó.
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Dela, sinto saudade. Não entendo o porquê disso. Justo ela, uma pessoa linda. A melhor pessoa que já conheci na vida. Não tinha rancor, era incapaz de ser indelicada com as pessoas. Minha avó era alegria pura. Sempre sorrindo, sempre falando bobagem. O arroz dela era ruim, ruim, ruim, mas eu comia e dizia que era bom. Minha avó era muito inteligente, a gente falava de tudo, até de sexo. E como ela gostava de falar palavrão! Todo o domingo ela ligava lá para a casa para saber como a gente estava. Eu atendia e ela dizia "bonequinha linda da vó". E eu podia sentir que ela tava sorrindo. Toda a vez que eu ia para Rio Grande ela fazia o doce que eu gostava. Na hora do almoço, eu me oferecia para ajudar e ela nunca queria. No fim do dia, pedia para eu ir na padaria e comprar pão. De tarde, eu invadia o quarto e dizia te-peguei-tava-dormindo e ela dizia que não, que tava lendo o jornal. Ela sempre mentia que não dormia depois do almoço. E eu achava graça. Minha avó pintou vários panos de prato para quando eu tivesse a minha casa nova. Ela me entregou treze panos de prato, todos de sapinho, pois sabia que eu gostava. Sapo de tudo que é jeito. Mas ela nunca imaginou que em breve eu teria a minha casa nova. E eu não sei se algum dia ela vai na minha casa. Também não sei se ela entende que eu tenho uma outra vida agora.
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Ela veio para o lançamento do meu livro e eu fiquei muito, muito feliz. Mas não sei dizer se ela entendeu direito o que estava acontecendo. Não sei se ela lê as coisas e compreende. Sei é que ela não é mais quem era. Ela não anda, fala pouco, tem os movimentos do lado direito limitados, não sei até que ponto raciocina. Sei que continua esperta e falando "porreta". Sei que alterna dias alegres com tristes, pois sente a falta do meu avô. Mas não sei se ela sabe exatamente o que aconteceu com ela, se tem uma dimensão das coisas. Acho que não. Ou sim. Mas isso nem os médicos sabem explicar. O que sei é que provavelmente ela nunca vai andar, nem pintar, nem fazer crochê, nem nada do que fazia antes. Agora, é da cama para a cadeira, da cadeira para a cama. Ela passeia de carro, meus tios levam ela nos lugares. Mas é na cadeira, não é andando. É diferente. Não sei se vai deixar de usar fraldas. Também não sei se vai precisar das tiazinhas que cuidam ela (uma de dia, uma à noite e uma nos finais de semana) para sempre. Só teve uma coisa que ela não abandonou: o batom. Minha avó adora batom, é muito vaidosa. É uma situação bem complicada para a minha família, pois todos sabem que não era essa a vida que ela queria para ela. Fora isso, nessas horas as pessoas se revelam. Alguns familiares não visitam, não ligam, não se preocupam, não ajudam, não dão bola. Antes, a casa vivia cheia. Agora, tem que pedir por-favor-vai-lá-ficar-um-pouco-com-ela. Acho triste. E tenho certeza que meu avô, lá do céu, se entristece também. Mas são nesses momentos que a gente conhece os seres humanos e seus lados feios e egoístas.
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O que eu queria dizer com tudo isso, vó, é que te amo e sei que para tudo existe uma explicação. Talvez a gente não saiba hoje nem amanhã, mas um dia saberemos. Que Deus te proteja sempre, que você não sofra nunca e que um dia reencontre o vô. Às vezes, a gente se revolta e não entende o que aconteceu, afinal, por que acontecem coisas ruins para as pessoas boas e as pessoas ruins ficam aí fazendo maldades pelo mundo afora? Vó, eu não me revolto mais. Não sei qual é o grande motivo, a grande lição, mas não me revolto. Só não quero te ver sofrendo. Mas confesso que me dá uma tristeza grande porque pela primeira vez na vida não vou receber tua ligação no dia do meu aniversário.
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