Dizem que o pior cego é aquele que não quer ver. Pior do que isso é o ceguinho de propósito. Eu uso muito este artifício. Você não sabe o que é um ceguinho de propósito? Eu explico: é o cidadão que sabe que a coisa errada está batendo em sua porta, olha pelo olho mágico e ainda ri. Nem se importa. Vê a coisa errada, cumprimenta, dá três beijinhos e nem te ligo.
O ceguinho de propósito se enche de desculpas. E, de quebra, é adepto do pague um, leve dois: ele tem desculpas para ele e para o vizinho da casa da esquina. Geralmente ele é de bem com a vida, sorridente, gentil, trata todo mundo com educação. De vez em quando ele é fechado, na dele, quietão. Mas o ceguinho tem bom coração, é do bem, faz parte da corrente do bem. Leva uma vida leve, suave e...cega.
O caderno está aberto. As páginas estão vazias. A caneta está próxima. Ao lado do sofá tem uma xícara de chá de morango. O adoçante está logo ali. Nem isso convence o ceguinho de propósito. Ele só faz o que quer. Na hora em que tiver vontade. Não liga para a opinião dos outros. Só se importa com o que o coração diz. E o coração dele é valentão. Sofre, mas não se entrega jamais. Não se rebaixa. Sofre e continua de pé.
Dizem que existe uma hora em que se vira a página. Vira, vira. Aquela já li, já enchi. Vira, vira. Virou? Não. O ceguinho de propósito só vira a página depois de muito levar na cabeça, no coração, no peito, no cabelo, na orelha, no chão. O tempo dele é diferente do tempo dos outros. Ele é diferente do resto deles. Ele nem sabe o jeito que é, mas é. Ele é, mesmo sem saber. Ele sabe, mesmo sem ser. E é. Somente é. Nada mais. O ceguinho de propósito tomou, levou, encafifou, se ralou. Mas ele vai até onde as forças o acompanham. Ele resiste. É guerreiro. É corajoso. Tapa o olho aqui, pisca aquele ali. Tudo isso por sentir demais. Ele não está certo, nem errado. A arma dele é ser ele e só virar a página quando o cansaço dominá-lo. E ele tem palavra: cansaço chega, ele tira a venda e volta a enxergar como os outros. Aqueles. Os mortais. Os que enxergam. Os racionais.