Ela chegou em casa cansada, largou a bolsa e foi preparar um café forte. Os dias andavam estranhos, seu coração apertado, garganta embolada, sensação de culpa invisível. Os amores são prováveis?, pensou. A cozinha estava com um cheiro à fritura, frigideira com óleo dormido no fogão. Sua mãe deve ter fritado bifes, o tempo anda úmido, o cheiro fica no ar. Ela odeia cheiro à fritura. O pó do café acabou, ela foi a pé até um mercadinho próximo a sua casa. No caminho observou aquela senhora que passeia com o cachorro sem coleira e cara de malvado. Ela não teve receio. Um pit bull poderia parti-la em micro pedaços e ela não sentiria nada: seu coração estava por demais estranho. Chegou ao mercadinho, pegou o pó de café, deu boa tarde para o atendente, pagou e voltou para casa. Andando a passos lentos percebeu que a dona do cachorro a olhava fixamente. Fingiu que não via. Ocupou a mente com pensamentos estranhos e percebeu que o que mais reside nelasão pensamentos estranhos e não se preocupou com isso, precisava voltar para casa e passar o maldito café e tomar um banho e esquecer que o dia dos namorados estava dobrando a esquina em sua direção.
Subiu as escadas, foi para a cozinha, meu deus, o cheiro estava na sua roupa, na sua alma. Seu perfume era fritura, mas como, ela nem estava presente no momento frita-frita. Deu um cascudo em suas teorias sem sentido e se pôs a passar o café. Uma música imaginária tocava em sua cabeça. Michael Bublé, Home. Música romântica. E ela cantarolando. O aroma do café começou a invadir seu corpo e ela foi pegando a xícara. Afastou a música, sentou a mesa e ligou a televisão.
- Manhê, estou cansada dessas propagandas, que saco! É dia dos namorados pra lá e pra cá! Odeio todos os namorados do mundo! Odeio casais felizes! Odeio, odeio e odeio.
A mãe não entendeu os motivos do ódio. Nem ela entendia. Tomou o café, foi para o banheiro. Banho quente, água batendo na nuca, sensação de limpeza, frescor, alívio, medo, aflição.
Lembrou, então, do papo com sua psicóloga: ela ficara visivelmente transtornada. Se vestiu, secou os longos cabelos castanhos, decidiu que não iria pensar no assunto até a próxima consulta. Mas como não pensar no assunto? O dia dos namorados estava muito próximo. Sua próxima sessão seria apenas na outra semana. Com um gesto qualquer, na tentativa de desviar os pensamentos, disse para si mesma: cansei!
Ligou o som e, coincidentemente, a música que tocava era Home. Pensou que deveria ser um sinal. Ela acreditava em horóscopos, signos, sinais. Tudo era um sinal. Quando era pequena pensava “se em 10 segundos algum cachorro latir eu só faço o dever de casa depois do desenho”. O cachorro latia e ela, toda prosa, deitava no sofá para assistir Tom e Jerry.
Seu pai chegou em casa e lá foi ela:
- Pai, não vai comprar o presente da mãe?, ela vai ficar feliz da vida.
- Não me ligo nisso minha filha! Somos casados há tantos anos, dia dos namorados é besteira, disse ele.
Ela sentiu algo indescritível. Sua mãe era romântica, adorava flores, sair para dançar, surpresas, presentes. Seu pai era o oposto: fechado, quieto, na dele, parado. Ele não lembrava de datas importantes. Um dia sua mãe disse:
- Ele é homem, minha filha.
Sua resposta era a mesma, programada:
- Mãe, pára com isso! Pára já com isso! Que desculpa escrota! Só porque é homem não pode ser romântico? Só falta tu dizer que homem que gosta de filme água com açúcar e chora é puto! Fala sério!
- Filha, um dia entenderás. Depois de um tempo a gente não liga mais pro esquecimento deles. Além disso, quando eu casei ele já era assim.
Ela não se conformava e pensava “porque casou então, porra?”. Sua mãe era infeliz. Não tinha aquele brilho no olhar e ela se sentia responsável pela (in)felicidade dos pais. Ela tinha obrigação de fazer alguma coisa. O primeiro passo era esquecer o que a sua psicóloga disse. Depois ela iria ao shopping e faria o de sempre: compraria um presente lindo para a sua mãe. Presente e cartão. E com a cara mais meiga do mundo chegaria em casa e diria:
- Paiê, comprei o presente da mãe. Deposita o dinheiro na minha conta. Assina o cartão. Ela vai ficar feliz.
Seria o mesmo de sempre. Ele não tiraria os olhos do livro-da onde ele tinha tanto livro?-e diria:
- Aham. Depois eu faço isso. Quanto é?
Então ela lembrou da terapia. Chorou. Chorou lágrimas que doíam e a deixavam afogada. Chorou e soluçou. Chorou e soluçou e quis ficar em um canto qualquer, escondida, até a próxima vida. Ou até passar aquele sentimento de fracasso.
- Marcela, se alguém tem que dar presente é o teu pai. Se ele quiser, ele dará. Se a tua mãe quiser, ela dará. Te preocupa com o teu namorado. Pára de tentar salvar um casamento que esqueceu de começar.
Ela enfiou a cabeça no travesseiro. No outro dia acordou cedo, foi ao shopping, comprou um anel de brilhantes caro e bonito. Chegou em casa e o pai estava lendo Kant.
- Pai, taí o presente da mãe. Antes que tu pergunte é o presente do dia dos namorados. Gastei uma grana preta, mas nem precisa me pagar. Ah, esqueci o cartão.
E foi encontrar seu namorado.