O que importa é o meio

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Os seus olhos cruzam a vida de outra pessoa, frio na barriga. Os seus olhos repousam na boca de outra pessoa, frio na barriga. A sua vida esbarra na daquela pessoa, frio na barriga. A sua boca encontra os lábios daquela pessoa, frio na barriga. Ligação. Mensagem. E-mail. Sorriso. Troca de olhares. Abraço. Aperto no peito. Mão que encosta nos seus dedos, frio.

O frio na barriga e aquela sensação de borboletas dançando tango no volume máximo em pleno estômago numa sexta-feira à noite são reflexos de emoções ainda sem nome, sentimentos sem exata definição. É bom sentir frio na barriga, você gosta do frio na barriga. Ele é início e fim, mas acredite: há muito mais no meio.

O meio é o começo do amor. Você sabe que todas as noites vão ter a garantia daquele braço direito esticado, no qual você se encaixa e sente-se abraçada, protegida. Boa noite, meu amor, dorme bem, o mundo podia parar naquele momento, tudo podia parar naquele momento, a vida podia se repetir sempre a partir daquele momento. Você sabe que todas as manhãs trazem a certeza daquele par de olhos pequenos e cheios de um brilho verde, daquele rosto de sono acordando, daquele sorriso escapando no canto da boca abraçado na preguiça. Bom dia meu amor, dormiu bem, o mundo pode parar agora, agora, agora. Por alguns segundos ele pára, pega no sono novamente e você fica contemplando aquele perfil adormecido, com os olhos fechados e se dá conta de que aqueles cílios são muito mais compridos do que você supunha. As sobrancelhas desencontradas e aquela pintinha do lado direito, entre o olho e a boca. E você olha tudo como se fosse a primeira vez; sem ele saber, sem você contar e você sorri um sorriso diferente e acolhedor, lembrando de tudo e pensando em cada frio na barriga e percebendo que o frio se transformou em calor. O que podia ter virado qualquer coisa – ou mesmo acabado ou mal começado – se transformou em amor puro.

Você levanta e segue sorrindo. De você mesma, das vezes em que ele atrapalhadamente ajudou você na cozinha. Não, ele não sabe mexer direito um molho na panela! Tem preguiça de lavar a louça. Molha o tapetinho do banheiro. Deixa tudo bagunçado. Esquece luzes acesas. Suja a pia de pasta de dente. Guarda coisas com o prazo de validade vencida. Tem bilhões de papéis sem utilidade em casa. Faz cara de blééé pro seu gosto por filmes de mulherzinha. Mas ele assiste junto e te abraça com o melhor abraço existente no mundo dos abraços. Te enche de surpresas. Te olha com um sorriso nos olhos e na boca. Te ajuda do jeito desajeitado. Te alcança a toalha na hora do banho. Lembra de coisas que você esquece. Lembra datas, sim, é um homem que lembra de datas especiais e participa por livre e espontânea vontade de eventos familiares! Você continua sorrindo. De você mesma, do ciúme bobo que ele tem de vez em quando. Sim, ele tem ciúmes infundados – assim como você. De vez em quando ele pensa que sabe tudo. De vez em quando ele diz coisas em tom petulante. De vez em quando ele rói a unha e te irrita com coisas que diz e faz. Mas a sua cabeça gosta do ombro dele. A sua orelha encosta em algum lado; direito, esquerdo. A curva do seu nariz se encontra com a curva do pescoço dele e lá tem um perfume que ninguém mais tem. E você fica dançando com o nariz pela barba até a orelha, pra sentir todos os cheiros e gostos; seus lábios rebolam graciosamente na barba, pra depois deslizarem entreabertos pelo queixo e por todos os cantos. A sua vida é muito melhor depois que deu as mãos para a dele.

Quando ele fala gesticula sensualmente as mãos, com a pose-de-sabe-tudo-de-tudo-de-tudo. Ele ri que nem criança. Sorri sorrisos diversos, intensos, inteiros, completos. Quando fala de algum assunto importante se concentra de um jeito inexplicável, viaja para outro mundo – e ainda te leva no colo. E ele tem uma mania horrenda, a mais belamente feia que você já viu e, ainda assim, adora. E ele coça o nariz de um jeito infantilmente ingênuo e divertido. A forma como ele ajeita o cabelo é particularmente meiga. E tem o abraço. Eu já falei dele, mas preciso repetir: o abraço é o rei dos abraços. Ele é tão bom que merecia um festival exclusivo em Veneza. E merecia muitas estrelas. E um caminhão de chocolate. E muitos brindes. E medalhas de ouro. Ele merecia estar sempre no primeiro lugar de todos os lugares que existem no mundo. Aham, entenda, ele é bom mesmo. O papa dos abraços. O Buda dos braços envolventes. O Zeus dos braços protetores. O Alá meu bom Alá dos corpos juntos, colados, seguros.

Que ninguém é perfeito a gente sabe. Que nem todos os relacionamentos são exemplares, idem. Que nada é sempre cor de rosa, também. Mas chega um momento - você não sabe quando – em que surge uma pessoa. Frio na barriga. Frio na barriga. Frio na barriga. Você começa a se enxergar melhor. A se reconhecer, descobrir, conhecer, se amar mais, muito mais – com a ajuda daquela pessoa. Aquela que apareceu no momento que você nem sabe quando foi, mas que se instalou, tomou conta, ganhou espaço e quando você percebeu, pimba!, ela tomou conta do seu coração, da sua vida, dos seus planos, do seu passado, futuro, presente. Sua cabeça inteira, sua mente inteira, seu corpo inteiro, seu tudo inteiro. Você está inteira. Efetivamente inteira e completa e sem medos e então você percebe tudo o que antes não via. Era pela falta de tudo isso que antes você tinha uma felicidade meia boca, morna, diminuída, sem sal. Não, você não era infeliz. Mas você não era plenamente feliz.

Você vê que sabe, depois de muitas suposições, ilusões, decepções e outros ões, que hoje ama de verdade. O amor não dá frio na barriga: ele te aquece por completo. O amor é muito mais do que um simples friozinho na barriga e vai muito além do que um desfile na Sapucaí de frios na barriga. E você vê que hoje ama por todos os amores que não teve, por todos os amores que existem na televisão, nas esquinas, nas letras de música, nas declarações em karaokês, nas calçadas riscadas de giz, nas telas do cinema. Você ama por todo mundo que ama e é correspondido, por todos que amam em segredo, por todos que amam e não são amados. Por todo mundo que sonha em ter um amor assim, tão completo, em sintonia, que dá a mão, que ri, chora, anda de balanço, dança sem música, caminha na chuva, escuta os silêncios, dá colo, o braço, o abraço. E ainda molha o tapete do banheiro. E diz que você é linda mesmo descabelada-irmã-gêmea-da-Medusa e mesmo com o rímel-borrado-opa-virei-um-panda. E não se importa com a bagunça que você faz no banheiro, nem com os muitos fios de cabelo que você perde pelo chão. E reclama que você jogou fora uma coisa que estava dentro da validade. E gosta de ver a sua escova de dentes ali, junto com a dele. E coloca bolsa de água quente na sua barriga quando você está com cólica. E te ajuda na cozinha. E diz pra você não falar daquele jeito com a sua mãe. E ouve todos os seus receios. Presta atenção nas suas manias. E, de vez em quando, pega no sono no meio dos seus falatórios noturnos. E te deixa bilhetes pela casa. E te abraça forte, muito forte, a cada vez que te vê.

O amor surge quando o frio na barriga abre espaço para os defeitos existentes e para as pequenas coisas do dia-a-dia, que chegam com a convivência. O frio na barriga vai embora – mesmo no inverno! – e dispensa cobertores. O amor vai muito além do que existe em todo o meio, pode apostar.

Um dia você me disse que amar é se jogar do precipício – sem saber se vai ter alguém lá embaixo para te salvar. Quando eu realmente me atirei senti o frio tomar conta, mas depois que me joguei ele passou. O que sobrou? O nosso melhor: o encontro dos nossos amores. Lá embaixo estava - e está e estará - o seu amor; você sorrindo, me salvando todos os dias - com o ombro que a minha cabeça ficou viciada, com a curva do pescoço que tem um perfume que só você tem, e que se encontra com a curva do meu nariz. E eu fico dançando com o nariz pela sua barba até a orelha, pra sentir todos os seus cheiros e gostos; meus lábios rebolam graciosamente na barba, pra depois deslizarem entreabertos pelo queixo e por todos os seus cantos. A minha vida é muito melhor depois que deu as mãos para a sua, ainda bem que precipícios existem.

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