Vitória

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O dia estava quase amanhecendo e ela ainda tentou fazer alguma graça. Quando a entrada era difícil ela usava como saída o riso. Era um pouco batido, mas situações assim a deixavam desestruturada. O temperamento infantil a impedia que observasse e agisse com seriedade, então, assim como as crianças sapecas que fazem arte e quebram vasos indianos, ela ria. Para quem não a conhecia o fato em si era extremamente atraente; para quem já a conhecia a graciosidade era aceitável e para quem estava falando sério era imperdoável.


Ela chegou na cidade, a mesma cidade de tempos atrás. O céu estava igual, nada havia mudado, até o vento andando em círculos lembrava aquele dia. O cheiro da cidadezinha era o mesmo, o barulho das folhas balançando era igual. Um arrepio cumprimentou a nuca, que estava nua envolvida em um coque. E ela sentiu medo. Medo de que nada daquilo tivesse realmente passado.


Não são as coisas que mudam, são as pessoas. Sabe, de vez em quando a dor sufoca, parece que pegam uma faca e vão cravando devagar, pra rasgar toda a pele. A pele vai abrindo, pedacinho por pedacinho, você sente aquela ardência. O ar falta, parece que alguém joga gasolina, álcool, diesel, tudo isso que tem nos postos de gasolina. Fósforo riscado e sorriso demoníaco: quer morrer? Ela lembrou de anos atrás, quando era uma menina, quando queria que as coisas mudassem, mas as coisas não mudam, as pessoas sim. Quando somos novos demoramos um pouco pra entender que nem sempre as pessoas são honestas consigo mesmas e com os outros. Demonstrar sentimentos, falar o que pensa, abraçar quando se tem vontade, deixar a lágrima sair rodopiando sem a menor vergonha, tudo isso é difícil. Ela sabia que era, de novo a falta de ar. Ela sentia como se o peito fosse um cadarço de tênis, você amarra, se tá frouxo você puxa, aperta, dá o nó. Quando você amarra bem forte o tênis é impossível tirá-lo com o auxílio do outro pé. Ela não desamarrava o tênis pra tirar, colocava docemente os dedos do outro pé no calcanhar e puxava. Ele sempre achou aquilo horrível. De novo, a dor.


Pequenas coisas faziam com que ela lembrasse daquele homem. Aquele que era pra ser tudo aquilo que não foi. Sabe, não dá pra construir sonhos em cima de alguém. O amor é uma ilusão, dizia uma tia já cansada. O problema em construir um sonho debruçada em uma pessoa é que ela pode ir embora sem dizer tchau. E foi o que ele fez. O tchau nunca existiu, ela buscou explicações que não obteve. O pior para ela eram as noites. A cama se tornava grande e os pensamentos pequenos, miúdos. Ela tentava recordar passo a passo, dor a dor, medo a medo.


Pare de pensar, diziam. O que importa é viver. Mas como ela viveria em paz sem ter a certeza de que tudo havia passado? Pessoas querem provas, sejam elas de amor, sejam elas de superação. Não dá pra deixar pra lá, não se deixa pra lá um homem que saiu sem dar um até breve, não é mesmo? Ela chegou na cidade, a mesma de tempos atrás, a faca cravando devagar, lá estava ele. O dia estava quase amanhecendo e ela ainda tentou fazer alguma graça, fingir que não estava abalada com o motivo dele ter ido embora. Outra mulher, filhos, vida feliz na cidadezinha que tinha os dias sempre iguais.


Não são as coisas que mudam, são as pessoas. Então ela riscou o fósforo. E nunca mais sorriu.


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