Lá de trás

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O dia dos pais se aproxima e, com ele, propagandas na televisão, jornais e revistas. Dê um celular para o seu pai. Dê uma faca Ginsu. Dê um serrote. Dê um perfume com cheiro de pai limpo. Nunca gostei de datas feitas, pois dias determinados são chatos. Tem dia do pai, da mãe, da criança, do namorado, da avó, do amigo; pra mim são datas comerciais. Money, o que move o mundo. Aniversário eu gosto, o que detesto são as dores nas costas que a idade traz, além das marquinhas de expressão que depois se transformam em marconas. Meu amigo Google contou que o dia dos pais surgiu na Babilônia, há alguns quatro mil anos atrás. Um cara chamado Elmesu Coitado Moldou fez o primeiro cartão, esculpido em argila, no qual desejava saúde, sorte, sucesso, sensações boas, sexo e todas as palavras com s existentes no mundo. Desconsidere, por obséquio, a última parte. O rapaz fez o cartão em argila e desejava coisas boas para o papai. O dia se origina lá na Babilônia, mas quem oficializou a data foi o Nixon. Richard Nixon, por óbvio. Aquele cidadão que foi presidente do país que é hoje liderado por George Bush. Gosto muito dele, tem gente que acha o pobre endemoniado. Não joguem pedras nos EUA! Muito menos aviões terroristas em torres bonitas. Poxa, eram bonitas aquelas torres gêmeas. Não entendo a capacidade humana de cometer esse tipo de atrocidade. Tem que ser louco ou debilóide, não me venha com essa de que Alá mandou e que a sua religião permite coisas do gênero. Me desculpe, não entrarei em papos políticos ou religiosos. Estamos aqui para falar de pai.


Não sou uma anciã, mas já vi e vivi fatos significativos. É bem bonito chegar no dia dos pais com um Bulova cheio de diamantes (homem também usam, não é coisa de florzinha), aqueles cartões imensos repletos de pai, eu te amo e mandar uma cesta cheia de pãezinhos para o café da manhã. Domingo de sol, pai feliz, barriga cheia, relógio no pulso, cartão lido, abraço do filho, eba, feliz dia dos pais! Pára tudo.


Existe pai de final de semana. Aquele que por um motivo ou outro não mora com o filho e não pode vê-lo todos os dias. Chega sexta-feira e vem, meu filho. Cinema, shopping, teatro. Alguns fazem a linha pai-cultural. Chega sexta-feira: vem, filho. Um zilhão de atividades esportivas. Outros adoram eventos sociais. Alguns atrolham o armário de besteiras, afinal, o filho está passando o final de semana em casa, pode comer bastante bobagem que dá cárie nos dentes e uma pré-obesidade bem básica. Alguns revisam deveres escolares, auxiliam na maldita Física, revisam o nosso amigo Português. Tem pai que ensina a pescar, outros a jogar golfe.


Existe o pai que morreu. O que fica na cabeça são as lembranças, o que fica em mãos são fotos, recordações, imagens. O pai era bom, o pai não era bom, o pai morreu. Depois que morre não vira santo não, se é bom é bom, se não é você sabe: sem mágoas, por favor.


Tem o pai que mora junto, mas é ausente. Vive trabalhando, coloca o filho em aula de tênis, frevo, pesca submarina, cuspe à distância, cha-cha-cha, valsa vienense, javanês, mandarim, sipalki-do e outros, tudo para manter a pobre criança atarefada. Tem pai que coloca o filho desde novo pra fazer terapia. Tem pai que não educa, espera que a escola e os anjos da guarda o façam.


Existe, também, aquele pai que é de verdade. Que erra, acerta, tenta de novo, apaga, tenta outra vez, rabisca, rasga a folha, pega outra e segue escrevendo. Aquele que não é o Capitão Caverna, o Superman ou o Batman, mas continua sendo o nosso grande e maior herói. Se atrapalha com vírgulas e pede a nossa ajuda. Domingo de manhã diz ei, me ajuda aqui, quero cortar as folhas da árvore. Que nos ajuda a pintar paredes. Não sabe muito bem como dizer que ama, mas demonstra com a atitude de estar incondicionalmente ao nosso lado, por mais estranho que isso possa parecer. Que, com as maiores adversidades, aperta forte a nossa mão, como quem diz estou aqui, não vou te soltar. Tem aquele pai que deixa um gosto de saudade quando lembramos do que passou. Tem o meu pai.


Não vou dizer o quanto ele é especial e querido e honesto nos sentimentos e caráter. Também não vou ficar elogiando, já que minha veia crítica vem justamente dele. Meu pai é importante pra mim, tem um caminhão de qualidades, isso é fato. Mas não são as qualidades dele que o diferenciam dos outros pais, suas imperfeições é que o definem. Em uma tarde, há bons anos atrás, eu queria aprender a andar de bicicleta sem rodinhas. Eu disse pai, me segura. Fui pedalando, olhei pra trás e ele não estava. Não preciso dizer que me estatelei feito melancia molenga no morrinho mais próximo. Pequeno trauma de infância. Há ótimos anos atrás comecei a pintar. Ele quis um quadro de barco, pois sempre foi fascinado pelo mar. Me empenhei pra fazer o quadro mais bonito que o Mundo dos Barcos já havia visto. Pintei. Tinta à óleo demora uma vida pra secar. Secou e entreguei, bem serelepe. Não gostei, queria um cais junto com o barquinho. Guardei a mágoa no bolso e fiz outro. Maior. Mais bonito. Três barcos. Um cais. Toma, pai. Legal, mas não era bem assim que eu queria. Como assim? A mágoa não cabia mais no bolso, tentei jogar no vaso e dar a descarga, não desceu. Entupiu, ficou, alojou. Aviso aos jogadores de mágoas no vaso: desentupidores não resolvem em boa parte dos casos. Trauma de adolescência. Afoguei os barcos com âncora e tudo. Muito tempo depois pintei um singelo quadro, cujo tema era uma ponte com um pequeno rio contendo um minúsculo barco com um minúsculo homem. Para a minha maiúscula surpresa, tcharam: minha filha, adorei o quadro, vou levar pro meu escritório. Tudo bem, pai. Mais de dez anos de barcos entalados na goela.


Todos nós possuímos alguns traços fortes, traumas soldados ao corpo, tatuagens da infância. Pai, mãe, amigo, coleguinha de aula, situação não tão bem esclarecida-superada-resolvida-digerida. Eu tenho, você tem. Meu pai também tem os dele. A saída é não acumular o que doeu, não produzir no próprio corpo alimentos que fortifiquem cenas já passadas. Meu pai, com meu joelho ralado pela queda e com meu desprezo pela pintura barcal, sabe disso.


Um dia, já adulta, com algumas dores nas costas e com marquinhas que ainda não viraram marconas de expressão eu descobri: a gente não tem que provar nada pra ninguém. Sem comparações, retraimentos ou neuras. Mas sem fingimentos. Se algo é presente, fale. Para exorcizar, para tirar sarro, para rir de si mesmo. Não podemos ficar endurecidos nem ter o semblante pesado. Já falei pra ele dos meus trauminhas infanto-juvenis. Ele não vê dessa maneira. Isso me faz crer que nós temos apenas as nossas lembranças. Nos agarramos ao que pensamos ter acontecido. Ou ao que realmente aconteceu, vai saber. O fato é que lidamos com as situações de formas diferentes. Por sermos humanos. E por termos sentimentos distintos. E é isso que faz cada um ser quem é. E se amamos, amamos quem enxergamos, não quem projetamos. Pai, te amo. Feliz dia dos pais. Adiantado, mas feliz.
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