Maratona de redecoração

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"Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra."


(Caio Fernando Abreu)





Eu observo tudo, todo o tempo, o tempo todo, sem folgas, férias, descansos, sossegos. Já nasci com a alma desconfortável, desajustada, inquieta, quem sabe inadequada? Você já deve ter experimentado aquele sabor de inadequação. Por causa de uma roupa, por ter esbarrado em uma pessoa, por perceber que um sentimento não foi embora de vez, por trocar de lugar o tempo inteiro e, ainda assim, sentir um formigamento espiritual. Declaro: sou a Rainha do Formigamento. Minha cabeça não pára, meu pensamento não pára, minha perna não pára, minha língua não pára, meus dedos não param, meu coração não pára (ainda bem!), meu sentimento não-sou-daqui não pára.

Outro dia saí de um compromisso por volta do meio-dia, estava um sol gostoso, resolvi caminhar um pouco, observar as pessoas, seus afazeres, suas caras, seus jeitos, suas sobrancelhas, seus cabelos, seus sapatos sujos, suas neuras. Óculos de sol, fone no ouvido e esforço para esvaziar a mente. Sim, ela vive cheia, repleta de zum-zum-zum, de vez em quando é preciso parar, eu tento e tento e tento de novo e nem sempre dá e eu sigo me esforçando e acreditando que um dia o bendito zum-zum-zum vai me deixar e vai comprar uma passagem só de ida para Bali. Estava dando a minha música preferida e, sem querer, fiquei com aquele sorriso querendo abrir a cortina da boca, um pouco tímido, meio travesso, sem saber direito o que o esperava lá do outro lado, afinal, você nunca sabe o que tem atrás da cortina. Pode ser um raio de sol, pode ser a chuva que bate na janela, pode ser uma aranha. Enquanto eu cantarolava mentalmente a minha música (é minha, comprei e tenho a nota) vi de tudo: crianças, velhos, casais, solidão, alegria, rancor, tristeza, demonstrações de cuidado, amor e tô-nem-aí.

Você já se sentiu em um clip? Aquele, aquele que tem a sua música. Era eu, era aquele dia, aqueles eram figurantes que escolhi a dedo. Um casal e um menininho lindo e fofo vestido de superhomem. Ele estava pra lá de feliz com aquela roupa, ventava um pouco e a capa dele acompanhava as piruetas que o vento fazia. E ele sorrindo, como é fácil deixar uma criança feliz, quanta simplicidade, quanta verdade. Uma mãe e uma menina loirinha e de olhos azuis estavam caminhando de mãos dadas, a mãe deu um pedaço de empada para a garotinha e ela fez careta e começou a chorar e cuspiu a empada e eu sorri com a cena. Um casal estava dando um beijo apaixonado, beijos, abraços, afagos. Um senhor estava comprando o almoço e falava ao celular, informando para a esposa o que havia comprado e dizendo que era pra ela preparar a cervejinha. Um cara, sozinho, pintava na rua. Uma moça andava de bicicleta. Um casal de velhinhos passeava de mãos dadas e corações abertos, o amor existe mesmo na terceira idade. E eu estava lá, observando tudo, pensando em como cada um é enfiado na sua própria vida, nos seus próprios problemas, nos seus próprios umbigos.

Há muito tempo não entro em uma igreja, missas me dão sono e ultimamente não tenho freqüentado casamentos e batizados. Aquele dia me deu vontade, sei lá, eu vi tanta coisa e tanta gente e gostei tanto da minha vida e da minha gente que resolvi entrar e agradecer por aquela sensação de felicidade. Entrei, percebi que as igrejas estão mais confortáveis: agora você pode ajoelhar tranqüilo que o joelho não dói, tem uma semi-almofadinha. Você entendeu o que eu tentei explicar? Se ficou difícil vá até a igreja mais próxima e ajoelhe. E reze. Ajoelhei, agradeci por ter sido forte em alguns momentos em que achei que não seria capaz de ter força alguma. Vou confessar: eu sou muito valente e, ao mesmo tempo, muito frágil para as coisas. Eu agüento, mas tudo me dói e é uma dor que não tenho como explicar, é funda, dura, diferente. Agradeci pelas pessoas que eu tenho na vida: a minha família, o meu sobrinho bochechudo que agora pensa que já sabe caminhar, a minha cadela que é linda e preta e sapeca, os meus amigos que são essenciais, importantes e amados e o meu namorado, que não acho palavras que descrevam tudo aquilo que eu sinto por ele. E nessa hora eu comecei a chorar. Aquela lágrima meio boba começou a tomar conta de um olho e deu a mão pro outro e elas são bem unidas e não se deixam sozinhas e virou uma festa e chorei. Chorei um choro de felicidade, não de tristeza. Não sei quem disse que choro é triste, eu choro de feliz um montão de vezes.

Antes de voltar para casa eu também pedi. Não gosto de pedir para mim, costumo pedir para os outros, mas dessa vez pedi para eles e para mim. Pedi coisas simples, elas são muito importantes na minha vida. Resolvi voltar, pensativa, mais leve, tranqüila, com uma sensação de paz. E pensei no meu aniversário, que é depois de amanhã. Sempre gostei de fazer aniversário, fico com a alma em festa, ela canta, dança, assopra velas, come brigadeiro e de vez em quando se embebeda. Pra falar a verdade ela se embebeda desde os meus dezessete anos, pois antes eu só tomava Guaraná. Light, óbvio.

Este ano pra mim é muito importante, um ano feliz. Tem gente que faz análise-de-vida no Ano Novo. Listas e projetos e mais listas. Eu faço listas, listinhas e listonas ao longo do ano, sem interrupções para tomar água. É óbvio que no Ano Novo também faço, mas a retrospectiva de vida mesmo eu faço nos meus aniversários. Eles são muito especiais, me trazem sempre algum ensinamento. Gosto de aprender e de saber de mim, a gente precisa se conhecer. E, como eu já me conheço há quase vinte e oito anos, posso dizer que: estou precisando de uma nova decoração.


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