Sem palavras

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(Uma palavra. Cem palavras. O fato é que elas são mais poderosas do que qualquer espécie de ácido que promete acabar com as rugas, muito mais problemáticas do que o aquecimento global, muito mais terríveis do que o sobe-e-desce-da-Bolsa, muito mais traiçoeiras do que gatos, muito mais difíceis de digerir do que mocotó.)


Andei chorando, sei que você deve estar pensando "conta uma coisa nova". E eu vou contar: andei chorando. Tem gente que associa o choro com tristeza, eu uno as minhas lágrimas com coisas que me emocionam. Sempre foi assim: feliz, infeliz, alegre, deprê, eu choro. Choro naqueles dias não-sei-direito-o-que-tá-havendo. Tem também a fase sou-eu-ou-é-o-mundo-que-tá-girando-pro-outro-lado? Na verdade o meu choro é meio lua, tem fases, tempos, espaços, de vez em quando é um chororô perdido, outras tantas vezes é um choro certo, pois eu sempre achei que nós sabemos o motivo de tanta (s) lágrima (s). Não me engane, você sabe, a gente sempre sabe. Gostamos, é bem verdade, de tapar o sol com a peneira, eu detesto essa expressão, você me entendeu, gostamos de mentir, incorporar um personagem qualquer pra aliviar as possíveis aflições, mas as aflições são inaliviáveis e a palavra, nós sabemos, não existe no Aurélio.




Tenho ouvido muito o cd do Marcelo Camelo, não sei se você simpatiza, eu gosto e a voz dele me acalma e ao mesmo tempo (você sabe que aqui dentro é tudo sempre ao mesmo tempo) me deixa meio reflexiva. Ele tem um tom suave, a voz dele entra pelos meus ouvidos e fica andando em círculos pelos meus pensamentos. O cd se chama "Sou", tem duas músicas que gosto muito, uma é "Vida doce" e a outra é "Doce solidão". Não, não pense (se você ainda não ouviu o hermano solito) que o cd é todo açucarado, foi pura coincidência. É que eu, você sabe, estou em uma fase meio Beto Barbosa, adocicada, talvez isso explique a preferência pela dupla doce. O cd me fez chorar, não, não vá achar que as músicas são horríveis. O livro que estou lendo também me faz chorar, é a biografia do Caio Fernando Abreu, escrita pela Jeanne Callegari. Quem gosta dele, leia. Quem não conhece a sua vida e obra, leia. Quem nunca ouviu falar na Jeanne, compre. Não, ela não me conhece, não ganho nada pelo momento-compra-o-livrinho-faz-o-favor-aí-amizade. É que eu amo ele, quem me conhece sabe. Outro dia fiquei tristérrima e chorei (novidade?), uma amiga pediu emprestado o livro de Cartas, você conhece? É um livro organizado pelo Italo Moriconi, uma reunião linda das cartas-cronicadas-textoadas-maravilhadas-doloridas-cheias-de-vida-e-morte-e-tudo-mais que o Caio Fernando escreveu ao longo da vida. Como eu dizia, emprestei e danou-se. Foi-se. Perdeu-se. Acabou-se. Fiquei bem chateada, era um livro de estimação, o meu preferido, o mais lido e remexido, sabe? Cheio de anotações, coisas sublinhadas, passagens, trechos, frases, palavras que gosto. Um tempão depois vou reler e penso epa, sublinhei isso por qual motivo? Aí percebo que isso-aqui-eu-esqueci-de-sublinhar? O momento sublinha-sublinha tem muito a ver com o humor, a fase da vida. Gosto de reler as minhas anotações, impressões sobre determinada obra ou passagem do livro. E me sinto meio invadida se alguém vai lá e remexe, entende? Parece que a pessoa vai descobrir os meus segredos ou anseios através de coisas sublinhadas. Tem gente que dobra livro, deixa ele todo esgualepado, eu não. Eu cuido, mas todos os meus livros são marcados, riscados, escritos, sublinhados. Adoro isso. E o livro de Cartas danou-se. Era realmente de estimação. Te dou outro, ela disse. Não precisa, respondi. Nada, sabe, nada vai trazer de volta todos aqueles momentos-marca-texto-rosa-e-amarelo. Deixa, deixa, outro dia, em outro momento, eu compro de novo. E re-sublinho.




Ando muito mal-humorada, percebi que não escrever (leia-se: não publicar, pois escrevo todos os dias, nem que seja uma mísera linha somaliana, magricela, mal cuidada) me dá um mau humor animalesco. Então, a técnica do humor é: escreve, publica no blog. Assim fica tudo bem, não tenho que usar focinheira e nem ser algemada para andar na rua. Estou na tpm, talvez seja a grande explicação para tanta sensibilidade-fúria-guardada-e-contida-no-peito-dolorido. Estou tomando uma pílula que, dizem, atenua os efeitos da tpm. Dizem, não vi nada de mais. Existe um medicamento novo no mercado, é específico para as mulheres-Almodóvar-à-beira-de-um-ataque-de-nervos (se você nunca assistiu, alugue hoje mesmo, o filme é engraçadíssimo). Diz a lenda, você sabe que o mundo é cheio delas, que ele dá aquela equilibrada nos hormônios. Vou testar e depois dou maiores detalhes (se eu lembrar, pois preciso tomar um remédio pra memória, sou a mais esquecida do planeta).




Qual a razão do texto? Não é fazer propaganda de filmes, remédios, livros, cd's, lambada e derivados, acredite. Tantas coisas nos fazem chorar, elas podem ser simples, complicadas, ingênuas, rebuscadas. O que provoca o choro certamente é algo que mexe em algum ponto de nós. E deve ser um ponto caliente, eu aposto. Lágrimas são quentes, você já viu lágrima gelada? Eu nunca. As minhas são bem quentes, pegam fogo. Vou contar uma coisa pra você. Sei que não deve ser novidade, hoje estou muito démodé, perdão. Tudo o que falam pra você, de bom e ruim, é inesquecível.




Você, o ser que ouve, é o mesmo que chora aquele choro triste, que traz uma sensação solitariamente estranha. Ou feliz, que deixa as lágrimas escorrendo por entre sorrisos e peito flutuando, sim, as lágrimas alegrinhas nos fazem flutuar, é que nem quando tomamos uns goles a mais de champa, fica tudo uhu-que-gostoso. Você, o ser que fala, não lembra de nada, não sabe se o que disse de bom fez o outro sorrir por dentro e por fora, transbordar alegria; não sabe se o que disse de ruim fez o outro rasgar por dentro e por fora, se desmanchar de tristeza. Por isso a gente tem que ter atenção, as palavras são armas. São muito mais poderosas do que qualquer espécie de ácido que promete acabar com as rugas, muito mais problemáticas do que o aquecimento global, muito mais terríveis do que o sobe-e-desce-da-Bolsa, muito mais traiçoeiras do que gatos, muito mais difíceis de digerir do que mocotó. As palavras doem mais do que qualquer chute no saco-pra-quem-tem, do que qualquer batida no seio-sensível-pré-menstruação, do que qualquer enxaqueca incurável, do que qualquer batidinha que o mini-dedo dá na mesa da sala de jantar, do que qualquer pele do ladinho da unha que você arranca com o dente e sai sangue e depois fica ardendo na água quente, na hora do banho ou nos momentos-Amélia-lava-louça-toda-a-noite. As palavras doem mais do que puxão de cabelo, voadora nas costas, tapa-na-cara-dupla-face, soco no nariz. O soco pode trazer um roxo que pode demorar semanas até sarar que pode implorar por gelo e pomadinha e compressa e chá de camomila pra desinchar que pode necessitar uma espécie de reclusão porque é constrangedor sair na rua com o olho roxo, todo mundo sabe que você levou uma coça. Mas o soco cura, você encontra o Tyson e fica tudo bem, ele até te convida pra tomar uma gelada e tudo acaba virando uma grande piada de mesa de bar, rá, seu boxeador de uma figa, bate de novo se você é bem macho! Risadas e mais risadas e provocações bem divertidas.




Experimente dar uma palavrada na cara. Eu sei, você vai esquecer da força com que ela saiu da sua boca e percorreu o curto espaço entre os seus lábios e os ouvidos do outro. Você nem vai lembrar o peso da sua língua. O outro? Ele vai tentar esquecer, vai tomar todos os remédios que indicarem, vai fazer a dança da chuva, vai rezar pra Nossa Senhora Desatadora de Palavradas na Cara, vai implorar para que o Demônio Palavral volte para o inferno. Nada vai adiantar. O roxo da palavrada é na alma. E, acredite, dependendo da situação, nunca sara. É por isso que a gente deve tomar muito cuidado. Principalmente se quem nocauteia a sua alma reside dentro dela. Sem pagar aluguel, nem condomínio, nem nada.
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