Verdade amputada

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Outro dia falávamos sobre mentira em uma mesa de bar. Eu e você sabemos que vivo falando outro-dia-e-talecoisa. É que, de repente, assim, quem sabe, a minha vida é cheia deles: os outros dias. Assim como é muito cheia de mesas de bares tudo-no-plural-mesmo-cheio-de-ésses, só os copos é que (por que será?) ficam vazios, vazios. Sinto muita sede, fazer o quê?


Uma vez, lá atrás, Cazuza falou a respeito das mentiras sinceras. Outro dia escrevi um texto (lá atrás também, nem lembro em qual ano, mas eu já era grande e sabia ir ao banheiro sozinha) falando sobre as verdades sinceras. Mentiras sinceras não me interessam, nunca interessaram. A verdade pode até ser meio dolorida, mas sabe que dói menos do que uma mentira descoberta? A única mentira permitida é aquela na fase de tpm amor-tô-gorda? Sendo que você está com três quilos a mais, inchada, espinhenta e com os hormônios fazendo hora extra em sábado chuvoso. Não-meu-bem-você-é-linda. Ai, tem certeza? Tenho-meu-amor. Não tô gorda mes-mo? Não-imagina-bem-capaz-deixa-disso-vem-cá. Beijo na boca, assunto encerrado, coitado do sujeito que é obrigado a conviver com uma mutante-demente-em-matéria-de-humor. Se bem que eu tenho uma teoria. Eu e você sabemos que vivo falando das minhas teorias-e-palavras-inventadas-e-talecoisa. A teoria é: mais vale viver ao lado de uma louca do que de uma moscona. Tem muita mulher mosca morta por aí. Mulher Serenus, conhece? Sempre calma, controlada, ri baixo, sorri que nem a Lady Di, os gestos são meticulosamente calculados, elas nunca caminham rápido e deus-o-livre, elas não falam puta-que-pariu-me-fodi. Entonces, baby, é mais melhor de bom viver ao lado de uma louca.com. Rimou. Eu e você sabemos que vivo rimando palavras nada a ver e talecoisa. Pois bem: viva ao lado de alguém viva. Agora algum engraçadinho dirá: moscas também são vivas. São, e como são! E pousam em tudo, inclusive em cima da merda, depois vão direto para o seu pedaço de pão com gergelim, eca, que nojinho. Esqueça a mosca morta e fique com as moscas em geral, aliás, não fique. Fique com as mulheres loucas, são as que farão a sua vida mais feliz, cheia de pimenta que arde a língua, cheia de açúcar que dá sede, fique com as mulheres que lhe tragam sensações. As mosconas sempre dizem que tudo-está-bem. Vamos ao cinema? Aham. Vamos jantar? Aham. Escolhe o lugar, benzinho. Ah, tanto faz. Moscona sempre acha que tanto faz. Existe a falsa mosquinha, que é aquela que finge-e-por-isso-é-falsa. Funciona assim: ela até se impõe, mas na hora H, I, J a bendita assume a mosquice que a acompanha desde o nascimento. Não consegue sustentar uma discussão, não tem como manter um argumento. Não existe curso pra tirar a mosconice do corpo, se você nasceu com ela certamente morrerá abraçada na mosca-rainha. Desculpa, tem que esperar até a próxima encarnação e torcer para nascer fora da Moscolândia.


Vamos ao outro dia, não era primeiro de abril, mas a mentira acontece muito mais de uma vez por ano. Não vou dizer que nunca menti, já sim, para não magoar. Uma amiga, em estado de depressão beirando o suicídio (coisas da vida real) perguntou se ela era feia. E ela é um dragão mais velho que a Dercy Gonçalves antes da morte, tem orelhas de abano maiores que as do Dumbo, parece uma anoréxica cheia de costelas se cumprimentando, tem a voz fina e fina e tão chata que nem vou me deter neste ponto, até os homens guatemaltecos fogem dela; não bastasse tudo isso ela ainda pensa que é modelo e usa roupas que só ficam bem na passarela e olhe lá, fuma feito uma égua nervosa e preocupada e é dona de peitos minúsculos, parece um menino. Um menino feio, não esqueça. Mas ela queria terminar com a própria vida, como eu ia dizer todas essas palavras lindas a respeito da (falta de) beleza da moça, essas que acabei de dizer pra você? Não, amiga, você é linda. Lembro que o "linda" eu pronunciei mais baixo, tanto é que ela me pediu "repete". Você é "linda". Hein? Putz, como ela ainda não tinha ouvido? Amiga, você é linda, linda, linda, linda, linda. Travou o meu sistema, eu parecia um robô e fiquei no linda-linda-linda-linda-linda até que minha boca secou e saí correndo pra cozinha pra tomar alguma coisa. Essas coisas que nós tomamos em mesas de bares. Tudo no plural, muitas mesas, muitos bares. Muitas águas. Você sabe que eu sou saudável e talecoisa.


Já menti na escola. Clarissa, cadê o trabalho sobre as planícies litorâneas? Desde pequena sou artista, não sei como a Globo ainda não me achou, se eu colocasse o meu pé lá certamente ia ganhar mais do que a Grazi Massafera. É que eu soube que por cada campanha publicitária ela ganha quinhentos mil reais. Cada campanha. Quinhentinhos. Tem também aquelas outras, as mais chinelinhas, a Mulher Melancia, Filé, Maçã, Melão, Salada de Frutas. Não sei por qual razão eu terminei a escola, entrei na faculdade e estou me formando. Era bem mais fácil sacudir a buzanfa no eixo Rio-São Paulo, algum sem glória ia me agenciar e pronto, sucesso. Clarissa na tv. Mas não nasci pra balançar a bunda, nasci pra falar sobre coisas em mesas. De bares, muito bem, você já bebeu o espírito da coisa. Quanto ao trabalho, eu matava a família. Professora, não fiz, o meu avô morreu. Ele vive lá no céu mesmo há mais de dezoito anos. Mas ele morria muitas vezes, pra muitos professores. Clarissa, tirou nota baixa na prova. É que a minha tia, a minha tia preferida...pausa para o choro. Suspiro. Funga-funga. Retomando a frase: ....é que a minha tia preferida, ela está muito doente, acho que não resistirá até o final do mês. Todo mundo se comovia. Não que eu gostasse da comoção, odeio essa coisa de pena de cá, pena de lá, mas eu tinha que livrar a minha cara. Funcionava mais ou menos assim: eu gostava do fundo, do agito, da bagunça e o meu grupinho era só da galera marginal. Gente que matava aula, jogava sinuca, dava presença e caía fora. Justamente por isso é que de vez em quando a gente se ralava em provas. Mas depois sempre me dava uma coisa muito louca e eu estudava feito condenada, então passava de ano. Só que eu estava sempre pendurada, com a corda no pescoço. E passava com as calcinhas na mão. Entendeu que a minha mentira era muito útil?


Menti muito nesta vida para a minha avó, pois ela me dava presentes pavorosos. Gostou, minha filha? Adorei, vozinha. Mesmo? Uhum, achei lindo. Pensa comigo: ela é velhinha, aposentada, gasta o pouco dinheiro que ganha em presentes escolhidos especialmente para me alegrar. Sou obrigada a mentir. Se eu disser que acho tudo horrível, coitada, vai ficar desiludida. Houve alguma intervenção divina, pois nos últimos anos ela deposita um dinheirinho na minha conta, ao invés de me dar cacarecos inusáveis. Inusáveis são coisas que não dá pra usar, creio que você entendeu, palavra nova, você sabe que eu amo isso, talecoisa. Já menti pra fazer o outro feliz. Olha, ele estava morrendo de saudade de você. Mentira, ele disse que nem sentia a falta dela. Menti, ora. Gosto de ver os casais atirados no romance, naquela coisa que envolve, embala, sabe? Antes que eu me perca falando do lado Cinderela de cada um, acho importante dizer que todas as mentiras nunca foram pra enrolar, enganar, prejudicar alguém. Já me prejudiquei por mentir, claro que sim. Minha consciência me cobrava em alguns momentos. Sei que é feio mentir, é errado, mas eu precisei em muitos momentos pra passar de ano, pra não apanhar de amiga, pra não ver uma suicida se jogar pela janela, pra tentar reconciliar casais e pessoas queridas.


Outro dia uma amiga disse que estava muito decepcionada com o namorado, pois ele havia mentido. Vou contar uma breve historinha. O namorado bem antes, muito antes, era um não-namorado, ou seja, era uma criatura sozinha, livre, desimpedida, papador de mulheres. A minha amiga bem antes, muito antes, era uma não-namorada, livre, freqüentadora de botecos, beijadora de algumas bocas masculinas e só. Então em um dia que nem lembro qual eles se conheceram, sorriram, oi-oi-muito-prazer, beijaram, gostaram e o negócio foi indo. Até aí tudo bem. Pausa para a explicação: o namorado era o tipo safadinho e tinha amigos do mesmo naipe. Eles passavam o rodo e deixavam a mulherada maluca, pois são do tipo famosinhos-todo-mundo-quer-provar. O namorado tem, em especial, um amigo que é muito, muito mal falado e conhecido de uma forma horrorosa no meio feminino. Ele é o terror em forma de gente. O canalha em forma de homem. Volta pra historinha: minha amiga estava com a garganta inflamada (não sei o que ela andou fazendo) e o namorado tinha muito trabalho. Amor, vou trabalhar em casa. Ela mal conseguiu dizer tudo-bem-não-tem-problema. No outro dia ele contou que o Claudinho passou na casa dele e disse ei, véio, vamos jantar. E ele foi jantar com o Claudinho, mas amor, vê bem, só fui jantar e voltei pra casa, afinal, eu tinha muito trabalho e por isso que numa sexta à noite eu não dormi com você, afinal, você estava com dor de garganta e precisava de cuidados. Tudo-bem-não-tem-problema. Duas semanas depois a minha amiga, já com a garganta novinha em folha, deu uma espiadela no celular do namorado (não faça isso em casa, é total falta de respeito). Achou o quê? Cinco ligações do amigo muito mal falado e conhecido de uma forma horrorosa no meio feminino, além de uma mensagem (tecnologia é tudo, mas lembre: não faça isso em casa): cara, muito boa a noite ontem, a Vanessa pediu o teu telefone e eu dei. Uóuóuó, sirene, ambulância, polícia. Ela sentiu vontade de matá-lo com um machado bem afiado. A Vanessa podia ser uma amiga, a Vanessa podia ser até lésbica, a Vanessa podia ser um traveco, vai saber? O fato é a mentira em si. Ele disse o seguinte: não falei porque você não gosta do fulano e fala super mal dele. Nós só fomos tomar uma cervejinha, nada de mais. A Vanessa é a garçonete, ela queria uma consultoria jurídica, descobriu que eu era advogado e patati-patatá. E a minha amiga não é trouxa.


Penso que a mentira tem alguns níveis, os saudáveis, os não-saudáveis, os enroláveis e os nunca perdoáveis. Mentirinha saudável é quando você mente pra não magoar. Mentira enrolável é aquela que a gente diz pro professor de educação física. Olha, eu tô morrendo de cólica, não posso correr um dez mil metros hoje, meu médico disse pra eu ficar assistindo a sua aula. A mentira não-saudável foi a que o namorado da minha amiga contou. Sabe por quê? Se era só uma cervejinha, se não era nada de mais, ei, não avisou por quê? Porque você ia ficar enchendo o saco, essa foi a resposta dele. Enchendo o saco, muito bem. Então, amorzinho, minha garganta está doendo (cara de dor), vou dormir cedo (bocejo seguido de esfregada nos olhos), tchau (abre a porta pro rapaz ir embora). No outro dia uma amiga liga dizendo que a sua carteira de identidade ficou com ela. Como, amor? Ah, é que a dor de garganta passou assim, bem de repente, me arrumei e fui com as meninas no Clube das Mulheres, vi um monte de homens tirando a roupa, inclusive um deles me chamou lá no palco e eu fui, dancei de corpo colado e fiquei louca de vergonha, pois eu estava de saia e ele estava com o parceiro dele de fora, balançando na minha bundinha. E não avisou por quê? Ah, porque você ia encher o saco. Olha, garanto que antes de você terminar a frase o namorado já foi embora cantando pneu. Mentira não-saudável, pense o seguinte: se namorar é encheção de saco simplesmente não namore. Insisto no fato de que se a cerveja não tem nada de mais, beba a cerveja e diga a verdade. Não importa a companhia, o lugar, a hora que vai, namoro não é prisão. Acho péssimo quem tem que pedir permissão pra sair, peraí, ninguém tem 10 anos pra pedir pra mamãe se pode ir ao cinema com a Lucianinha, me leva que a mãe dela busca, mãe. Mas se a namorada enche o saco por tudo, troca de namorada. Ou fica sozinho, assim ninguém enche o saco, por tudo ou nada. Simplinho, vamos descomplicar a vida.


Nunca perdoáveis. Pra mim a traição é imperdoável, pode vir ajoelhado, pode cantar em japonês, pode passar vinte e nove dias chorando, pode caminhar em cima de caco de vidro. Não perdôo. Acho uma falta de tudo. Mas não condeno quem perdoa, pois acho que cada um sabe do seu relacionamento. Creio que quem tudo bem resolvido numa relação não trai. E se tiver vontade de consumar o fato, por favor, que tenha a decência de dizer olha-não-dá-mais-ando-a-fim-de-outras-bocas-e-cheiros-e-corpos. Então vai embora, vagabundo. E não volta, porque a gente tem que ter amor-muito-próprio. E ele tem que ter estoque, ouça o que eu digo.


Alguém vai falar que quem-mente-que-a-tia-vai-morrer-mente-que-ficou-em-casa-quando-na-verdade-tava-fazendo-sexo-selvagem-com-o-clone-do-Richard-Gere-versão-mais-jovem. Não. Eu disse que existem mentiras e mentiras. Assim como existem verdades e verdades. Você sempre sabe o que está fazendo, por mais que ache que não saiba. Uau, que profundo, não? É a mais pura verdade: vale a máxima do não faço com os outros o que eu não gostaria que fizessem comigo. Se a minha amiga tivesse saído pra uma cervejinha com aquela amiga putona que ele detesta e ele tivesse descoberto após uma futricação no celular dela, garanto que a casa ia cair. Mas a casa continua lá, intacta. Porque homem não mexe em celular de mulher. Homem só mente. Mulher é que mexe em celular de homem. E mente. Nós somos os seres mais perigosos do planeta. E ainda conseguimos simular choros. Como diria Bóris Casoy, isto é uma vergonha!


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