Carta para o meu melhor amigo *

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Há alguns anos atrás eu simplesmente não conseguia te entender e acho que entre nós havia uma parede com um cimento cheio de contestações e tinta fresca de críticas. De repente eu não tinha capacidade para digerir alguns gestos vindos de você e seguidamente me deparava com aquela sensação meio azeda de fracasso. Minha nota que podia ter sido melhor ou um quadro que podia ter ficado mais bonito; acho que fui um tanto dura com o seu jeito de ser.

Lembra quando eu estava aprendendo a andar de bicicleta? Você resolveu tirar aquelas rodinhas auxiliares e te olhei fundo e disse “promete que me segura”? Você disse "sim, sim". Quando olhei para trás você não estava, acabei me desequilibrando e fui parar em um morro. O resultado foi: muito choro, joelho ralado e um sentimento de solidão. Quando nós brigávamos eu saía cheia de lágrimas, ia para o quarto me agarrar em alguma almofada (você sabe, choro sem cena dantesca não é choro) para me achar a maior vítima das vítimas adolescentes. Ficava ali fungando esperando você chegar e dizer “ei, não chora, não precisa, tá tudo bem”. Você nunca vinha, mas eu sempre esperava. Sabe, essas histórias fizeram sentido depois que eu cresci.

Sei que tenho que enfrentar o mundo - e o medo - e cair, se necessário for. Também sei que, enquanto você puder, sempre estará pronto para me ajudar a levantar e limpar os eventuais machucados, afinal, você nunca me deixou só. Por um instante algo sobrevoa a minha consciência: alguma vez te deixei sozinho? Sei que, de uma maneira peculiar, todos nós somos sozinhos. Não é à toa que nascemos sós, morremos sós, sofremos sós. Já viu que na hora da alegria todos querem tomar um gole do seu champagne? E na hora em que você se fecha como uma ostra, tem medo de colocar o nariz para fora, se sente uma raspa humana: onde estão os amigos que gostam de fazer brindes e discursos? No fundo é você com você, e isso não é ser pessimista ou solitário - muito menos triste - , isso é aceitar que nós temos que aprender a equilibrar os nossos anjos e demônios.

Aprendi desde cedo que temos que fazer por merecer, vou te contar um segredo: guardei todos os seus ensinamentos em uma lista. Na verdade ela não existe, mas é o que me serve de alimento. Contraditório e um pouco incoerente, eu bem sei. Nada chega de mão beijada, o mundo lá fora é diferente. Tenho mania de fingir que o mundo é colorido, justo e que as pessoas podem até ser legais. Será que é muito ruim fingir um pouco? Talvez eu invente verdades, é menos dolorido. Na vida de verdade as pessoas me assustam, existe nelas uma crueldade absurda, inerente. E elas são medrosas. Possuem um medo descomunal de respirar fora da caixa, entregar a cara a tapa. Não tenho esse medo, sempre fui valente, você sabe. Acho que, se preciso for, a gente deve arrancar a pele. Tem que doer, sangrar, perfurar, cortar, ralar. Tem que deixar trauma, lembrança, marca. Tem que acumular experiências, tirar lição e empilhar aprendizado. Mas também tem que curar e virar uma cicatriz decente e bonita. Não gosto de azedume, suspiros de infelicidade, olhos interrompidos e sonhos pela metade. Não importa como: temos que enforcar o mal e achar um sentido que faça sentido.

Sabe qual a minha maior preocupação? É saber se você é feliz. Não esse feliz vulgar, feliz de feliz. Você acorda por quê? Respira por quê? Entenda, você não é velho, muito pelo contrário. Não deixe os seus projetos junto com a roupa suja na lavanderia. Onde está a sua coragem? O cansaço não pode te vencer, nem o desestímulo. Por favor, não me decepcione. Não se decepcione.

Será que algum dia eu soube demonstrar com exatidão o meu amor por você? Acho que não, essa coisa exata nunca foi a minha cara. Não sei fórmulas de cor, muito menos equações. Lógicas para mim são ilógicas. Muitas vezes eu nem sei traduzir, falar ou escrever, é tão difícil! Você é a pessoa que eu mais admiro na vida, já disse e repito: por você vale qualquer coisa, qualquer esforço. Te amo tanto que a minha garganta vai fechando devagar e juro que não quero ser cafona, mas te ver triste me deixa com o coração pingando lentamente. Lembra daquela torneira do banheiro que a gente fechava e ficava “plic...pliccc...”? Não adiantava fechar ou apertar, ela pingava sem fim.

Você não é herói, mas conserta tudo. Tem solução para tudo. E me diz que no outro dia as coisas sempre parecem melhores – ou mais compreensíveis. Com licença, vou usar as suas palavras: tudo tem solução. Tudo. Você precisa se consertar e eu vou te ajudar, sabia? Nunca vou te deixar sozinho e se algum dia você estiver perdido é só procurar a minha mão que nós acharemos o caminho de volta, mas eu quero que você tenha essa certeza na sua cabeça: minha mão sempre estará ao seu alcance.

Algumas coisas eu nunca soube pedir, mas você entendeu. De vez em quando as coisas não saíam com clareza, mas você acendeu as luzes. E sempre esteve comigo e eu te amo tanto que até me dói o peito. Obrigada por me salvar muitas vezes: dos outros, das situações, das minhas próprias dúvidas e sombras. Tudo que eu tenho de mais belo aprendi com você.

Não desaprende as coisas simples e que são as mais valiosas, nem deixa o teu coração emudecer. Através das janelas existem paisagens e através das paisagens existem muitas outras coisas: temos que saber enxergar.

Desejo que você não perca seu lado brincalhão, bobo e criativo. Que consiga se perceber, se entender e acreditar em dias melhores, mesmo que isso seja complicado hoje - ou sempre. É difícil ser adulta, paizinho, mas eu continuo tentando. Gostaria que você tentasse também. Você é o melhor que tem. O mais bonito que já fizeram e inventaram nessa vida. Nós estaremos sempre juntos, não importa em que lugar do mundo eu esteja e para que lugar você vá. Feliz aniversário!



Com amor,

Polaca





* Da série "Cartas guardadas atrás da estante".


** Texto publicado em 19 de novembro de 2007.
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