Das coisas que a gente esquece

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Lembrei que eu queria esquecer, mas em primeiro lugar eu queria esquecer da obrigação de lembrar do esquecimento proposital. A gente deveria conseguir esquecer assim, num piscar de olhos, em um gesto breve com a mão, num soluço, num espirro, num suspiro. Só esquecer, nada mais, mais nada. Mas eu sei que algumas coisas a gente nunca esquece. Ainda bem (será?).
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Desde o nascimento possuímos algo chamado memória. Ela é boa, armazena dados específicos, importantes, diversos. A memória vai crescendo e vai enchendo, informações e vivências vão se acumulando. Mas a memória tem um coração de mãe, que mora lá na casa da mãe Joana, então sempre cabe mais um, no caso, sempre cabe mais material. E ela fica nesse papel meio guarda-volumes, que por sua vez são pesados. Mas é incrível, apesar de mãezona a memória trai a gente. Trai as nossas lembranças frescas, que com o tempo se tornam estragadas, com mofo. O que foi um dia importante acaba se perdendo no tempo. Acho isso triste, não gosto de perder coisas. E me pergunto se as coisas que esqueço eram importantes, pois o que realmente importa nunca sai da gente. A memória também trai as palavras. Nunca mais. Sempre mais. Até o fim. Para sempre. O tempo dirá. Frases feitas. Tudo comum, banal, dito assim, num piscar de olhos, num abrir de boca, mas a memória deixa até o lugar-comum-às-vezes-incomum pra trás.
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A memória vai caminhando devagar, às vezes corre, de vez em quando, lá na frente, a gente dá uma olhadela pro que passou e enxerga tudo pequeno, distante, fraco, quase sem cor. E bate aquela nostalgia do viver de novo, do querer pular pro passado, abraçar os pedacinhos da memória, pegar cola e ir grudando um no outro que nem peça de quebra-cabeça, pra tudo voltar e ficar novo e fresco e vivo e com um tom mais de hoje. Não fica. Não tenta. Não dá. O que foi não vai voltar, mesmo que a gente remexa em fotos, em arquivos que só existem na nossa mente, em coisas que só vivem num canto da gente.
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O mais difícil da memória é passar na frente da casa, aquela casinha que passamos a infância e levamos o primeiro tombo e comemos a primeira uva da parreira e plantamos a primeira margarida e brincamos com o primeiro vizinho e fugimos pela primeira vez de casa. A casa que foi o primeiro tudo, o primeiro suporte, abrigo, modelo. E ver que aquilo tudo só existe agora dentro de nós, pois a casa foi demolida, não existe mais ou existe, mas lá dentro tem outra família morando, com outro estilo de vida, outros sonhos, outros móveis, outras risadas, outras discussões nos almoços de quinta-feira. Isso dói um pouco, dói ver que o que vive ainda é só a recordação e a recordação com o tempo vai ficando amassada, perde a nitidez, perde a sensação de ainda-lembro-bem-como-era-tudo, porque com o tempo a gente vai esquecendo-de-como-nos-sentimos-ao-ver-as-coisas-pela-primeira-vez. E eu falo aqui de memória, do que a gente vê primeiro, sente primeiro, do que fica primeiro. Porque o que fica primeiro a gente nunca esquece. Ou, pelo menos, não deveríamos esquecer.




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