Além da fajutaria

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Existe aquilo que é e aquilo que as pessoas dizem ser. Dizem muito vezenquando. Vez em outra dizem quase nada. E você fica parado parado diante daquilo que nem sabe o que é. A gente tem medo de ver além do que é mostrado. De percorrer caminhos que nem sempre são fáceis, perfumados. Nem tudo é tão bonito, às vezes um cheiro ruim toma conta, não aquele enxofre que dizem que é do coisa ruim, mas um cheiro de fraqueza, de cansaço. A gente vê tanto no mundo, tanto tão feio, tanto tão desanimador. Dá receio de acreditar em futuro bom. Dá medo de ter que afogar a esperança. Mas o que seria dela sem a gente? A esperança seria uma sozinha, uma perdida, uma mal amada, seria uma sem. Então a gente acolhe, conforta, orienta. Ela se sente segura e cresce que nem planta. E de vez em quando dá o bote, nos morde e vai embora.




Ouvi falar de bocas maldosas que cada um tem o que merece. Descobri, por fim, que uma maldosa já fui, pois já disse uma frase com o mesmo tom. Se cada um tem o que merece, se cada um colhe o que planta, se a gente tem de volta o que faz pela vida, se existe mesmo esse troço maluco do você-atrai-o-que-transmite, eu me rendo. Aceito e não questiono. Engulo sem pensar ou pestanejar. Por que será que a gente se pergunta, diante de um Momento Estou Mal, o que fizemos de errado? Por que será que insistimos em achar uma culpa, uma falha, deslize, qualquer coisa? Por que será que queremos arrumar um bode espiatório? Se eu tenho domínio sobre os meus atos e se eu tenho controle total sobre a minha vida, é isso aí: eu posso ir pro lado certo ou errado. E isso existe, afinal? Não creio. Existem percursos infinitos. Eles podem te levar pra qualquer lugar. O que existe é força de vontade. Sim, uma pitada de sorte também. Mas a sorte não nos acha, nós é que vamos atrás dela. Acredito nisso. Não basta querer que a sorte venha, é preciso ter a sensibilidade para encontrá-la. Tem que estar disposto. Tem que querer abrir mão de. Tem que querer se sacrificar por. E ir adiante.




Agora você vem me falar do destino, da coincidência. Te devolvo com a minha velha teoria: não existe, isso mesmo, não existe. Guarda essas palavras no canto da boca. Ou cospe pela janela do quinto andar. Coincidência é um conjunto de acontecimentos, só isso. A gente que tem mania de querer dar nome pra tudo, até mesmo pra sentimento. Pretensão a nossa. Destino é uma invenção de quem não tinha como denominar a vida de alguém. Teve sucesso? Ganhou na megasena? Uau, era o destino. Balela, não acredito. Teve sucesso porque tomou decisões certas, ganhou na megasena porque nasceu com o fiofó virado pra lua. Nada de destino. Pretenciosos somos ao querer nomear tudo o que existe.




Se cada um tem o que merece, é a hora do divã. Tenho tudo o que mereço e ainda espero mais. Sei que nem tudo é tão rápido e aquece fácil quanto um leite colocado no forno de micro-ondas (agora devidamente separado, de acordo com as novas regrinhas que surgiram para atrapalhar a vida dos que lidam diariamente com as palavras), mas sei que devagar a gente se esquenta. Aos poucos o sabor chega, invade, surge, toma conta. Quero mais. Mais lambidas de cachorro. Mais barulhos de chuva batendo no telhado. Mais cheiro de chuva em dias quentes. Mais pés descalços no chão da sala. Mais abraços fortes quando o mundo rodopia sem parar. Mais olho no olho que vira uma conversa silenciosa. Mais paz no peito. Mais barulho interno. Mais palavras belas. Mais sorrisos grátis. Mais amigos sinceros. Mais Doritos no pacote. Mais mãos dadas no cinema. Mais filmes enredados no sofá. Mais domingos preguiçosos. Mais chá de mãe. Mais colo de pai. Mais noites dormindo abraçados. Mais entendimento. Mais compreensão. Mais gente que se dá. Mais saúde, educação e cultura pro povo. Mais gente que acredita em finais felizes. Mais poesia na vida da gente. Mais versos colados na respiração. Mais doação.



Quero acordar sentindo o teu cheiro bom. Dormir ao som do beijo noturno. Quero continuar me enxergando em cada olhar mudo, falado, parado, tarado, estatelado, cansado, suado. Quero sexta, sábado, domingo, segunda, terça, quarta, quinta. Quero começar tudo de novo. Quero continuar tudo outra vez. Quero seguir em frente. Quero continuar tendo um sentimento que move e dá vontade de continuar escrevendo até ficar com as mãos manchadas pelo tempo e enrugadas pelo avanço da idade. Quero meses transformados em anos. Quero não perder nenhum minuto. Quero que você seja sempre a última imagem que eu vejo ao fechar os olhos. Quero não perder a capacidade de apreciar e reconhecer coisas simples. Quero continuar achando que o pouco é muito. Porque é o pouco que importa. O detalhe, o simples que abraça o outro simples e vira uma coisa enorme, que só quem sente sabe bem do que se trata. Se cada um tem o que merece, obrigada, Vida. Porque a Vida me deu uma coisa bonita demais. Impossível de colocar nessas linhas.










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