O dia vinte e três

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Quem me conhece um pouco, pouquinho que seja, sabe que o dia do ano que eu mais gosto não é o Natal, data em que o bom velhinho aparece e confere se nos comportamos bem ao longo dos 364 dias e, obtendo resposta positiva, analisa se merecemos ganhar a tão sonhada bicicleta (pode ser um sapato novo, anel de diamantes, viagem ou um simples sorvete). Também não é a Páscoa, época em que o coelhinho sapeca aparece cheio de chocolates, trazendo espinhas e quilos a mais de lambuja pra vida da gente. O dia, aliás, os dias do ano que eu mais gosto são todos os dias vinte e três.

Por quê?, perguntará você. Se você me conhece um pouco, bocadinho que seja, sabe que os dias vinte e três são especiais na minha vida. Representam um momento em que eu fui presenteada. Foi um presente que eu não pedi pra ninguém, simplesmente surgiu. Quando a gente não pede presente ele muda de nome e vira brinde, certo? Eu, que nunca ganhei nada, nem rifa. Deve ser por isso que de vez em quando embarco numa montanha-russa e viro tudo do avesso: é difícil ser feliz.

Você vive uma vida com a filosofia de que é tudo assim mesmo, as coisas são assim mesmo e vão continuar bem assim mesmo, afinal, os homens são assim mesmo. O que seria o “assim mesmo”? O meu coração não engole frases feitas, apesar de já ter derrapado na lama de muitas delas. Não gosto de quem se conforma em viver assim mesmo. Me dei conta que sou assim, mesmo! Se eu fosse de outro jeito não pensaria que a qualquer instante a canoa pode virar e tudo pode terminar (assim mesmo), que nem as outras histórias.

Nosso cérebro recebe muitas informações. Nossa memória criativa armazena todos os tipos de dados que lá chegam. Junto com isso, algumas dúvidas e inseguranças e questionamentos do tipo será-que-mereço-tanta-coisa-boa? Ei, não me entenda mal, se você fizer uma pesquisa perguntando o que as pessoas querem já consigo ouvir a resposta: ser feliz. Se você fizer uma pesquisa direcionada para o público feminino heterossexual consigo ouvir mais claro ainda: eu quero ser feliz no amor, eu quero achar o homem da minha vida, eu quero encontrar o pai dos meus filhos! Não vamos generalizar, conheço muitas mulheres que não querem casar, outras tantas nem pensam em ter filhos. Mas a lei natural das coisas, sei lá quem criou este treco, diz o seguinte: você, mulher (me sinto fazendo um comercial da Marisa), precisa encontrar um bom homem, precisa ter uma boa casa, precisa ter um bom filho, precisa ter um bom emprego. Você, mulher, precisa ser boa. De cama, inclusive. Seja boa, não seja puta. Então eu penso: não pode ser puta? Mas a gente quer ser puta a todo instante. Puta amiga, puta filha, puta irmã, puta namorada, puta escritora, puta publicitária, puta arrumadora de armários, puta cozinheira, puta pintora, puta cantora, puta mãe, puta lavadora de copos, puta descascadora de pepinos, puta seguradora de petecas e ondas fortes, puta descobridora dos sete mares, puta engraçada, puta espirituosa, puta sedutora e, acredite, puta, bem puta, na cama.

O fato é que o ser humano me parece mais condicionado a aceitar o amargor do fracasso do que curtir o bem-muito-bom do sucesso. Coisa de doido, você dirá. Pois diga. Mas antes observe a sua vida. Retroceda a fita para o seu dia de fossa que lidera as paradas de sucesso, não qualquer dia, mas O Dia Líder. Nariz entupido, olhos inchados, problema no peito, coração com lencinho de papel entre os dedos, mundo que roda e nunca pára, visão turva, cabelo emaranhado, modelito-tô-virando-mendiga. Você procura os amigos, pega o telefone e liga para o travesseiro, aluga o copo de conhaque com os seus infortúnios. Música deprê na medida certa, volume treze pra dar sorte.

Agora tente recordar do momento feliz. Você é feliz, você está feliz (eterna diferença entre ser e estar), não importa se ganhou um emprego novo, uma promoção, um amor novo em folha, um apartamento maior, um cachorrinho mimoso. Você ganhou e isso deveria bastar. Mas surge um desconforto, você pensa no mais. Eu queria mais um quarto no apartamento, eu queria mais dinheiro, eu queria mais reconhecimento, eu queria um cachorro com um rabo maior, eu queria mais um rímel alongador de cílios. Você fica com cara de quem está querendo. Ponto. Volta muito rápido a fita: quando você estava numa fossa sem tamanho é claro que tinha motivo para estar insatisfeito, certo? O você-feliz é outro, nova pessoa, novo momento. E mesmo assim a insatisfação. Alguns dirão que é normal, somos humanos, ora bolas! Eu concordo, a eterna insatisfação vai assombrar a humanidade.

Quero ir mais adiante. Por que ser feliz é um problema? Por que achar um problema (ou muitos deles) na felicidade? Por que não dá pra ser feliz sem culpa? Se o vizinho ganha menos do que você, paciência. Ele que trabalhe mais. Ele que faça uma reza boa. Ele que estude e faça cursos. Ele que aprenda a falar francês. Se a sua amiga não tem um amor de verdade, paciência. Ela que esteja com os olhos e os ouvidos abertos. Ela que procure no lugar certo. Amor não se procura, a gente sabe. Mas ela que qualquer coisa, já que você nada pode fazer. E não pense que tem culpa se tudo está muito bem, obrigada. Por que você não se permite? Por que precisa arrumar uma confusão? Por que não consegue ficar em paz? Você merece, afinal não é culpado por todos os problemas do mundo, tampouco precisa carregá-lo nas costas. Você tem que se libertar da teia do preciso-arrumar-um-motivo-para-sofrer. E a hora, meu amigo, é agora.

Confesso: tenho vocação pra Maria do Bairro. Em alguns momentos reproduzo falas pra lá de mexicanas. Em outros tantos, me sinto a mulher made in México. É um horror, não pense que é bom. Uma dose de drama é até charmoso. Mas quem disse que consigo tomar só uma dose? Não que eu seja alcoólatra, mas uma biritinha é bom, vai. Então eu bebo tudo e quando vejo arrumei um problemão. Minha mãe sempre disse que quando não tenho problema arrumo um em seguida. Eu ficava muito brava, brigava, esperneava. Hoje entro numa boa no programa do Raul Gil. Pra quem você tira o chapéu, Clarissa? Pra minha mãe, Raul. Nem uso chapéu, mas compro um só pra tirar pra ela, afinal, mãe é mãe e, além de outros dois mil e nove reconhecimentos e agradecimentos, a minha progenitora merece a homenagem que consiste em tirar todos os chapéus do mundo. Preciso aprender (ainda há tempo!) que mãe sempre tem razão. Verdade, cedo ou tarde elas acertam na mosca. São meio ninjas, um pouco bruxas, videntes, sábias. Mães, com três letras e ême no início.

Você pode estar achando uma abobrinha sem tamanho este assunto, mas observe que é difícil lidar com a felicidade. A tristeza faz a gente se adaptar, buscar outras possibilidades, nos obriga a dar a volta por baixo, pelo lado, por cima, pra qualquer lugar. Já a felicidade é enfiada no seu caminho, melhor dizendo, na sua goela. Felicidade é atirada, você tem que fazer descer goela abaixo, sem água, chá de boldo, refrigerante ou cerveja gelada. Se entalar, dá três pulinhos, junta saliva, faz qualquer negócio, te vira: dá um jeito da felicidade entrar, pegar o elevador (ou ela que desça de escada, felicidade não pode ser sedentária!) e se instalar confortavelmente dentro de você, sem o menor direito a ter azia ou má digestão. E não adianta ter dor de estômago, enjôo ou querer vomitar depois. Agüenta no osso e ainda coloca um sorriso na cara, veste o que estiver mais bem passado dentro do guarda-roupa e vai fundo.

Não pense que sou uma criatura medonhamente triste e compulsiva por infelicidades cotidianas. A minha sina não é ser infeliz, não persigo freneticamente a tristeza, quem vive perto de mim sabe. O que estranhamente me atrai é um problema aqui e outro ali. Não consigo relaxar e me permitir ser feliz e, eu sei, você não está entendendo nada. A culpa nem é sua, eu é que não estou me fazendo entender. Vou fingir que você tem cinco anos então. Tudo bem, me desculpe, você não é idiota. Tem coisa mais bobalhona do que duvidar da inteligência de um leitor? Sei que não, por isso vou contar uma breve história.

Era uma vez uma menina que cresceu e virou mulher. Uma noite sem horário de verão ela conheceu um rapaz que antes tinha sido um menino, mas cresceu e virou um homem, ainda bem, hoje em dia o mundo está tão sem ordem e progresso que as crianças crescem e viram qualquer coisa, até mesmo travesti. Mas o menino virou um homem e é isso que importa, caso ele tivesse virado um travesti talvez nada disso aconteceria. Sim, certo que sim. Melhor dizendo, não, claro que não. Não aconteceria. De uma forma inexplicável que tentarei explicar agora eles se encontraram. Acho que não vai dar pra explicar mesmo, certas coisas têm que ficar no âmbito-two. Você conhece o âmbito two? É assim: fica entre os dois. Vamos deixar a história, então, só para a menina que virou mulher e o menino que virou homem. Certos assuntos são particulares e não dizem respeito a ninguém mais. Deixarei, portanto, de tentar contextualizar você. O fato é que eles se encontraram. Atrasados, sim. Cansados, sim. E, da noite para o dia, sem seguir nenhum script, sem construir castelos, sem fazer planos, os planos foram feitos. Os castelos foram construídos. Os scripts foram montados. As noites e dias individuais se transformaram em noites e dias em dupla. E foi nascendo, crescendo e se desenvolvendo um sentimento importante, único, capaz de fazê-los perceber que amor é doação, liberdade, segurança, intimidade, medo, falta de medo. Amor é tudo. E tudo o que você precisa para amar de verdade é se dar conta disso. O amor verdadeiro é o sentimento mais poderoso que existe. Faz as pessoas mudarem, faz com que elas repensem a vida, faz com que elas vejam a vida por um lado que é duplo. Faz com que elas pensem sempre no plural, pois agora não mais estão sós. Quando o amor chega a gente sabe.

Sei que hoje eu podia ter escrito uma coisa mais romântica, bela, intensa ou preciosa, afinal, não é um dia comum. Mas, sabe, eu escrevo tanto! E sei que falo e demonstro muito. Sei que a gente sabe. Resolvi, então, fazer diferente. Escrevi, escrevi e escrevi sobre uma coisa que talvez seja a mais importante de todas: essa minha incapacidade de aceitar a felicidade que me é concedida. Não é medo, quê de loucura ou algo do gênero: creio que seja falta de costume. A gente demora pra se adaptar com a presença constante da felicidade, felicidade-sombra, felicidade-perseguidora, felicidade-psicopata: aonde quer que você vá, lá ela está. Sorrindo, como sempre. Dando um abraço gostoso, como todos os dias. Estando ao seu lado, simplesmente por estar. Falando ou em silêncio, com qualquer roupa, de qualquer jeito. É falta de costume, mas eu prometo que chego lá. É que é difícil relaxar e entender que eu mereço ser tão feliz assim.


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