Confissões matinais

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Antigamente eu deitava a cabeça no travesseiro e ficava pensando na vida. Demorava para pregar o olho, de tanto que meu pensamento viajava. Ele pegava trens, metrôs, navios, botes, caiaques, bondinhos, bicicletas e táxis. E também andava no "onze", como diz meu pai. Isso era antes, antes de ser uma trabalhadora. Muita gente pergunta o que tenho feito, qual o motivo da minha ausência em eventos sociais e amizadísticos e eu digo: é trabalho, minha gente. Uns acreditam, outros riem feito hiena faceira. E eu sigo falando: é trabalho, minha gente.


Uns sabem da minha vida, outros não. Quem já conhece o roteiro, pule de parágrafo. Para quem ainda não sabe detalhes tão pequenos de nós dois, sinta-se em casa e prepare o chá verde. Fui uma péssima aluna, não por falta de capacidade, mas por pura opção. Gostava do agito, da bagunça, de fazer arte, matar aula, sentar no fundo, falar besteira e queria dominar o mundo. Eu fazia tipo, no fundo morria de medo de repetir de ano ou pegar recuperação. Sempre fui inteligente pra caramba, mas preferia deixar o livro fechado do que tentar entender aquele monte de números. As professoras me achavam um doce, "pena que ela não presta atenção em aula". Eu passava o tempo todo conversando, desenhando ou observando as pessoas. A partir da quinta série comecei a pegar recuperação, mas passava sempre. No primeiro ano do segundo grau a coisa fedeu, repeti de ano. Foi uma tragédia. Depois de alguma enrolação, terminei o segundo grau. E agora, e agora? Nenhuma resposta, então vou fazer vestibular só por fazer. Turismo, na PUC. Um curso que era a minha cara, uma turista em aula. Passei. Fui um dia, detestei, não quis mais. Novo vestibular, Psicologia. Não passei, mas entrei no Direito. Vamos tentar? Vamos. Fui até o terceiro ano, engolindo aqueles códigos horrendos e pensando que aquilo não era a minha cara. Sou meio dona da verdade e enrolo todo mundo quando quero, mas devo isso ao meu lado Janete Clair, não nasci pra ser advogada, apesar de defender os fracotes quando se faz necessário. Psicologia, Psicologia, era o que eu queria. Nasci pra isso, eu pensava. Vestibular, passei (sempre tive uma sorte do cão), comecei, fui até o penúltimo ano. Desisti na parte da faculdade em que te ensinam o seguinte, ainda que veladamente: faça o seu paciente ficar dependente de você. Não concordo, tenho meus valores e eles me dominam, desculpa. Terapia é libertação e não muleta. O psicólogo não é Deus, ele indica caminhos, só isso. Não é ele quem te leva para o lugar. Ele mostra pra onde ir, mais nada. Adeus, mundo da mente - e demente!


Não sei direito quando comecei a escrever, deve ter sido lá pelos meus cinco ou seis anos. Não parei mais, nota-se, né? Quando eu era criança escrevia cartinhas e bilhetes para os meus pais e avós, ficava ao lado cuidando a existência de alguma lágrima tímida. Gostava disso. Quando me tornei adulta e recebi um e-mail (que nunca vou esquecer) pra lá de bonito, percebi: é isso que eu quero. O e-mail dizia, entre outras coisas, assim: "me identifico com o que você escreve, pois você coloca em linhas o que não sei dizer. chorei lendo várias partes. blá blá blá". Bingo: causar emoção nas pessoas. Mudar o dia de alguém, nem que seja por cinco minutos. Não quero nenhuma rua com o meu nome, nenhuma cadeira na Academia Brasileira de Letras, nenhuma estátua, nem ser referência nos próximos 100 anos. Quero só que alguém, por um ou dois minutos, sinta. Apenas sinta. Sinta qualquer coisa, de qualquer jeito, com qualquer intensidade, de qualquer maneira. Só. No meio do meu caos acadêmico surgiu um curso novo na Unisinos, batizado por um nome comprido - e bonito: Formação de Escritores e Agentes Literários. Alguém se forma escritor? Não. Muito escritor nem tem o bendito diploma. O curso é Graduação Específica, ou seja, você pode dizer que tem diploma e se aprontar e for em cana pode ficar em cela especial. Lá aprendi tanta coisa, inclusive que o mundo literário tem mais estrelas do que o céu. Li muito, entendi diferenças entre contos, crônicas, resenhas, ensaios, poesia e tudo mais que você possa imaginar. É um curso complexo, diferente, instigante. Concluí no final de 2008, cheia de orgulho e alguma saudade. Como o curso é caro e bem específico (apesar de ser graduação), pouca gente se formou. Pra falar a verdade: eu e mais uma. Por isso não teve toda aquela papagaiada de reitor entregando diploma, gente de terno e gravata e vestido longo e etc, etc, etc. Se senti falta? Não. O que eu queria era me formar. E me formei no que eu gosto, o que é para poucos. Se fosse para agradar os meus pais eu teria me formado em Direito. Mas ainda bem que eles não são daqueles que pensam que é bonito dizer que têm uma filha advogada ou psicóloga. E ficaram ao meu lado, apoiaram as minhas decisões, sorte a minha.


Quando eu fazia psicologia fiz um estágio de um dia. Não é mentira, você não leu errado, foi um dia mesmo. Eu adoro crianças, mas é muito difícil lidar e tratar de crianças com problemas. Não falo problemas de relacionamento, falo de crianças com Síndrome de Asperger, autistas ou qualquer coisa que saia do "padrão". Não consegui. Então posso dizer que meu único trabalho foi um estágio sem remuneração de um dia. Hilário, não? No ano passado resolvi procurar um emprego, virar gente, largar a vida de filhinha de papai (que me perseguiu por muito tempo). Não pense que meus pais compactuavam comigo, nada disso. Muitas vezes o meu pai disse "te coça" e eu não sentia coceira, então ficava quieta. Cheguei a fazer a Carteira do Trabalho, ela tá novinha em folha, posso te mostrar. Eu tinha 27 anos, nenhum trabalho nas costas e meu currículo era de dar dó. Eu escrevo, certo? Sim, eu escrevo. Posso trabalhar no quê? Vamos ver: editoras! Bom, aqui em Porto Alegre existe uma panela grande, é muito difícil entrar, só se você é Amigo do Fulano ou Sobrinha do Beltrano. Jornal ou revista: idem. E agora, e agora? Um amigo querido disse que eu tinha jeito de redatora. Tá bom, então. Não botei muita fé, só depois pensei melhor na idéia. Mas o que eu sei de propaganda, pensei? Bom, eu adorava comerciais quando era pequena, inclusive decorava muitos deles (incorporei meu lado atriz inúmeras vezes na casa da Vó Lalá). O que eu sabia realmente? Nada. Muito menos conhecia alguém neste mundo, exceto o meu amigo - que já tinha migrado para o Mundo dos Games. Fui cara dura e mandei alguns e-mails para umas agências de propaganda. Oi, sou a fulana, faço o curso tal, não tenho nenhuma experiência. Inacreditável! Só que me chamaram. E eu fui, com a cara, a coragem e sem portfolio. Todo mundo tem que ter portfolio. Eu não tinha.


Oi, tudo bom? Tudo bom. Fala da tua vida. Falo da minha vida. Sou a Clarissa, tenho 27 anos, faço o curso tal, adoro escrever, não sei nada de propaganda, tô sendo sincera, mas tenho vontade de aprender. Aham, tem só vontade? É. Tá bom, a gente entra em contato. Muitos não entraram, alguns responderam por educação - talvez. Olha, a gente quer alguém com mais experiência. Faz a pasta e volta aqui. Tá, brigada. Isso se repetiu muitas vezes. Comecei a me desiludir. O discurso começou a mudar. Olha, você escreve muito bem e tal, mas não sei se como seria utilizando a linguagem publicitária. Não estamos dispostos a arriscar. Ok, eu entendo, obrigada. Comecei a conhecer mais gente do mercado. Meu namorado, o melhor publicitário da região sul, dizia pra eu não ficar desestimulada, que era assim mesmo, etc, etc, etc. Confesso que não acreditei muito nele, pois o mercado é fechado, pra entrar é complicado, ainda mais sem a bendita pasta. Até tentei fazer alguma coisa, mas entenda: pra quem não conhece nada de propaganda fica muito difícil fazer uma pasta assim, do nada. Imprimi um Dicionário Publicitário, li alguns livros, tentei saber pelo menos 1% do assunto. Um dia eu estava distraída. E, depois de uma dessas entrevistas que fiz, me chamaram. E eu fui. E comecei a trabalhar em uma agência. Eu estava lá há menos de um mês quando outra agência me chamou. Clarissa, a sem pasta. Fui lá (que no caso é aqui) e me contrataram. Fiquei na outra agência da metade de novembro até dezembro de 2008 e em janeiro deste ano comecei aqui. Sem pasta, mas com vontade. Junto com isso, algumas questões: me formei no final do ano passado e sou assistente. A maioria dos estagiários têm vinte e pouquinhos anos, eu tenho vinte e muitões. Me senti um pouco deslocada, pela idade. Algumas pessoas torceram o nariz, como assim, ela é escritora e não publicitária, saia daqui agora mesmo, sua intrometida!


Me tornei a nova trabalhadora do Brasil, com direito a vale-transporte e tudo mais. Sim, eu só andava de táxi. Clarissa, a filhinha de papai. O salário de assistente impede que eu enxergue o taxímetro, só posso ver o cobrador. E olhe lá. Até que as "fichinhas" de ônibus são graciosas, mas parece que serão extintas. Mal pude aproveitá-las...tsc, tsc. Antes que você pense que eu era uma alienada, explico: no meu mundo tudo era normal. Papai e mamãe pagavam as contas, você nem sabia quanto dava a conta de água, os amigos não trabalhavam, outros trabalhavam mas não se sustentavam completamente. Mundinho de Colégio Farroupilha. Gente que esqueceu de crescer e passar algum trabalho pra sacar como a vida funciona. Passei um tempo abduzida por coisas que me impediam de olhar pra frente e por isso não saía de casa sem escova no cabelo. Acordava às 6:30 da manhã, fazia escova, me maquiava, colocava o salto 10 cm e ia pra aula. O ritual me acompanhou por todo o período escolar e por um tempo na Unisinos. Meu curso passou para a noite, então eu acordava às 9:00, tomava café, ia caminhar, voltava, escrevia, almoçava, dormia, escrevia, ia pra aula de van, voltava e minha vida era um marasmo. Eu tinha horror de andar de ônibus, por isso nunca andava, era no máximo lotação. Hoje eu acordo às 7:30, tomo banho, não faço escova, só passo um rímel, coloco um all star 0 cm, ando 3 quadras, espero o ônibus (que passa religiosamente entre 8:40 e 8:42), dou bom dia pro motorista (que já me conhece) e pro cobrador, desço na frente da agência, atravesso a rua e sento na frente do meu computador. Às vezes não almoço, de vez em quando almoço tarde, às vezes consigo sair cedo, em outras fico até quando a pauta quer. E volto de ônibus. E quando eu volto o ônibus tá lotado, o povo tá apertado, será que na vida tudo é passageiro? Ontem mesmo, Deusulivre, fui em pé todo o trajeto. O ônibus estava explodindo de gente suada. E eu fazia parte deles, estava suando pra caramba, o calor era descomunal, made in Senegal e no momento em que senti uma gotícula de suor escorrendo pelas minhas costas (eca!) eu comecei a rir. Pensei: quem te viu e quem te vê, branquela! Epa, não pensa muito não, te agarra no puta merda que tem uma curva logo ali.

Atualmente deito a cabeça no travesseiro e esqueço de pensar, pois pego no sono em seguida. Antes a minha vida era um eterno final de semana, agora conto os dias pra chegar sexta-feira. Aproveito cada sábado como se fosse o último dia da vida e domingo a tristezinha abre a minha janela. Mas aí a segunda entra em cena, vejo que realmente achei e fui achada pelo que gosto de fazer. Mesmo ganhando menos que um gari. E olha que gari nem precisa de pasta, hein? Talvez esteja na hora de trocar de ramo.


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