Em caso de emergência, ligue 911

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* São feios e me pertencem, criaturas tropeçantes com esmalte de tigra.




Me senti ridícula. Ridícula, ridícula, ridícula. Tropecei no meio da rua, aliás, no meio da avenida. Você sabe que Avenida tem um peso, uma dimensão bem maior do que uma simples Rua. Tropecei, me senti ridícula e, como todos os tropeçantes-tropeçados-tropeçadores do mundo, olhei para o ladinho bem discretamente, depois para trás, para frente, visão completa, check in no Mundo Dos Envergonhados. Fiquei vermelha, tropeçada e ridícula. Mas segui adiante, teria continuado de cabeça erguida não fosse pelo fator principal de toda a minha agonia: tropecei exatamente no mesmo lugar, na semana passada.
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Ridícula, ridícula, ridícula. Você já tropeçou, sei que sim, então sabe do que falo. O ato de tropeçar nos causa algumas reações não planejadas: riso, vergonha, vontade de enfiar a cara em algum buraco, vontade de apertar em um botão só para caminhar mais e mais rápido e sair correndo dali, dali daquele lugar em que todos estavam te olhando, analisando cada passo e rindo da sua cara só porque você ridiculamente tropeçou em uma pedra que estava ali, bem ali esperando qualquer coisa, ainda que a coisa fosse você. Você, seu riso, sua vergonha, sua vontade de sumir, seu desejo de andar muito rápido e entrar em qualquer esconderijo para ninguém mais te ver, sair do campo visual de quem olhou, riu, achou graça, gozou. Falo do riso porque quando vejo alguém tropeçando começo a rir. Es-can-da-lo-sa-men-te. Não me seguro. Só não dou risada quando é velhinho-velhinha-vovô-vovó, do contrário viro uma hiena faceira que ganhou na Loto.
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Pensei nos meus tropeços. É melhor tropeçar ou cair? Caindo a gente corre o risco de se machucar, sair sangue do nariz, ralar o joelho, rasgar a calça, quebrar o salto, perder o brinco, rachar o relógio de estimação. A gente também pode, quando a queda é de natureza grave, quebrar um braço, perna, sei lá. A queda pode ocasionar cortes, vá que a gente caia em cima de algum caco de vidro? Já no tropeço o máximo que ocorre é um tornozelo torcido e olhe lá. O tropeço seria um susto, um aviso. Cuidado, você pode cair. Devagar, se continuar nesse ritmo você vai se esborrachar. Há quem diminua o passo, reduza a marcha. Há quem siga a toda, sem pisar no freio, olhar para os lados, ver se o sinal está mesmo verde. Bum! Oh, oh, foi mal.
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Quando eu tinha dois ou três aninhos a minha mãe me mandava tomar cuidado. Ela era a Mãe Dinah Dos Meus Tropeços (alguém me explica a vidência das mães?!?). Eu cresci, aprendi a pilotar a vida (nem tão bem assim, pois sou meio facona), mas às vezes saio da pista. Ainda bem que existe Seguro, ainda que divino. Nem sei se acredito muito nisso, mas vá lá: não gosto de tropeçar! Me sinto ridícula, ridícula, ridícula. Prefiro cair, ainda que me estatele bem linda no meio do paralelepípedo. Já me estatelei, bem linda e sem dublê. Junta aquela gente em volta, burburinho total, ninguém para ajudar, pois brasileiro gosta mesmo é da desgraça alheia, de sentir pena, de fazer ajuntamento e dizer olha-coitada-caiu-e-se-fodeu-todinha-da-Silva. Não gosto de tropeçar, me sinto boba e burra e desastrada e inútil e humilhada e envergonhada e última no mundo. Sim, pois só a última no mundo tropeça duas vezes no mesmo ponto (quem disse que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, hein?). Tropeço gera constrangimento. Por causa dos outros e, principalmente, de si mesmo. Já percebeu que a primeira coisa a ser feita, logo após o tropeço e a cara de ui-tropecei-será-que-alguém-viu, é olhar para os lados, procurando milhares de olhos? A gente tropeça e automaticamente olha para os outros, em busca da certificação: quem acompanhou meu passo torto? Mais uma prova de que, antes de nos preocuparmos com nós mesmos, nos importamos - e muito - com a nossa imagem. O que vão pensar de mim, a Tropeçadora Da Rua?
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Prefiro cair, mesmo porque eu gosto é do fuzuê. Um tropeção não dá Ibope, já uma caidinha básica, pensa bem, pode ter fratura exposta, curativos, etc, etc e toda a família Etc e Tal. Perguntas, respostas, histórias, causos. Eu, como boa contadora de histórias, gosto muito do agito. A veia mexicana é aparente e, como sou branca e bem branca, a veia verde mexicana vive aparecendo. Todo mundo vê. Prefiro cair, com tropeços não aprendo. Aprendo com quedas, por isso sou cheia de cicatrizes: ao levar um tombo, marcas se criam automaticamente. Quando você cai pode ter sorte e sair só com um arranhão. Ou pode ter azar e se cortar. Pode ter mais azar ainda e o corte inflamar, encher de pus e outras nojeiras, infecções. O tratamento pode ser lento, o uso de antibióticos pode se fazer necessário. Injeções também não estão descartadas, muito menos alguma cirurgia de emergência.
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A cicatriz é inevitável, aparente, mostra que algum dia uma ferida nasceu, cresceu, amadureceu, morreu e deixou aquela lembrança no corpo, na memória. Gosto de cicatrizes, elas não são feias. Cicatrizes são um marco, marca, etapa. Cicatrizes podem até deixar alguma saudade. Podem queimar, arder, latejar em dias de chuva. Cicatrizes podem aparecer só por baixo da roupa - ou por cima. Cicatrizes podem se esconder atrás de base, pó, iluminador. Cicatrizes, de cara lavada e alma limpa, sempre aparecem, não há como escondê-las de ninguém, nem do próprio espelho. Não é preciso ter medo de encarar de frente cada cicatriz, sem pensar em retocar ou disfarçar. Cicatriz não é imperfeição, é uma prova do passado, é o passado tatuado. Cicatrizes nos fazem mais fortes, são o nosso Banco de Dados, nosso Arquivo Pessoal, nosso Histórico, nosso Currículo. Eu adoro cair e cuido bem das minhas cicatrizes, até convido para um chá das cinco - com Negresco. As quedas me ensinam mais do que os tropeços, preciso do Processo Espatifatório De Cara Na Chón para aprender. Independente disso, continuo tropeçando em mim mesma. Todos os dias.


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