Fora dos livros

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Foto: Sara Sa, http://olhares.aeiou.pt/

É mais ou menos assim: tem a teoria e a prática. Ou a prática e a teoria, aprendi há algum tempo que a ordem dos fatores não altera o produto. A gente aprende nos livros, na repetição, na marra. Eu sempre gostei mais da prática, só assim fixo o aprendizado. E a marra sempre gostou muito de mim, por isso me ferrei bastante até saber de cor certas coisas da vida.

Quando eu era adolescente uma professora particular tentava me ensinar Física, sem sucesso. Eu olhava a paisagem pela janela, árvores ganhavam vida, eu criava histórias para os transeuntes que passavam pela rua. E na hora da prova eu lembrava vagamente algum tópico abordado em aula. Observe que eu disse "professora particular". Matemática, Física e Química nunca foram o meu forte. Não bastava a escola, eu precisava de aula particular. Sempre preferi coisas mais profundas e humanas. O exato e o racional passavam por mim abanando, antipáticos. E eu virava a cara e empinava o nariz para eles, bem metida. Ficou um clima de inimizade entre nós que persiste até hoje. Tudo bem, não podemos agradar toda a torcida.

Não entendo o porquê de tantas historinhas sobrevoando a minha mente. No supermercado vejo os produtos que têm dentro do carrinho das pessoas, a partir daí crio um roteiro para cada uma. Aquele grisalho deve morar sozinho, dentro do carrinho tem um saquinho com 3 pães, 2 latinhas de cerveja, lasanha congelada. Aquela moça deve ser vegetarina, pois só vejo frutas, legumes, granola e leite de soja. Já a senhorinha elegante deve ter marido e uma incontável filharada (ou então ela faz rancho), porque o carrinho dela está praticamente lotado. Uma caixa enorme de leite, 2 latas grandes de Nescau, 2 pacotes de pão de sanduíche, 4 garrafas de Guaraná e segue uma lista sem fim. No restaurante eu analiso o rosto das pessoas, a forma como elas comem, se estão ou não sozinhas e, a partir disso, crio personagens. Você descobre muito de alguém só observando a forma como a pessoa se movimenta, mastiga, olha, conversa. É divertido, mas de vez em quando confesso que queria um sossego. A minha mente trabalha independente da minha vontade, é por isso que volta e meia tiro um dos meus bloquinhos da bolsa e começo a fazer anotações sobre a vida, impressões, ideias sem acento.

A vida na prática é bem diferente da vida na teoria. É mais ou menos que nem sexo. Quando você é virgem imagina como a coisa funciona. Lê revistas, ouve casos, entende a teoria. Mas só exercitando que você descobre o verdadeiro espírito da coisa. Com o amor é exatamente a mesma coisa. O amor é uma construção. De vez em quando bate um vento forte, dá uma tempestade, chuvas esparsas, nuvens, sol, calor, geada. Às vezes o dia está londrino, em outras completamente paraguaio.

O amor na teoria é limpo e lindo. Sofisticação, elegância, perfume, sorrisos. "Sofisticação e elegância" são duas palavras muito usadas para vender apartamentos. Observe no próximo folheto que te derem no semáforo. Tenho uma visão sobre isso. Para começar, rasgue o folheto, é pura enganação. O apartamento pode ser bonito, caro e pertencer a algum bairro nobre, mas sofisticação e elegância você não compra nem adquire. Estão dentro de você. Um amor sofisticado não é amor. Um amor elegante não é amor. Um amor perfumado não é amor. Um amor sorridente não é amor. Desculpe decepcionar você e a sua visão do que, afinal, é o amor. É que amor pra mim é outra coisa.

O amor na prática é sujo e descabelado. Tenho horror de gente que finge que certas coisas não existem. Você é uma pessoa. Toma banho de manhã e sabe que o banho tem prazo de validade, o desodorante vence, o cabelo fica oleoso, a unha pode ficar suja, uma alface pode querer abraçar o seu dente da frente. Não estou aqui levantando a Bandeira Do Fique Imundo. Não confunda as coisas. Sejamos práticos, apenas. O seu amor arrota depois que toma Coca-Cola, faz cocô duas vezes por dia, solta pum quando não consegue segurar, tem bafo de manhã cedo. Simples assim. Amar não é gostar de tudo isso e pedir por-favor-deixe-eu-sentir-seu-fedorzinho. Amar é gostar apesar disso. Porque nem sempre o outro vai estar perfumado, maquiado, com cheirinho a sabonete. Amar é viver fora dos livros. E entrar no banheiro depois que o seu amor fez o número dois. Respira fundo e vai com fé, amar é fazer sacrifícios. Vai por mim: passar Bom Ar só piora a situação.

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