De volta pra mim

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(Foto by Francisco Spiandorello, dia 15 de maio, na loja Refúgio Urbano)




Voltei. De alguma forma, voltei pra mim. É incrível, a gente espera tanto, mas tanto por uma coisa, ela acontece, o grande desejo que pedimos para o gênio da lâmpada finalmente é realizado, você até que enfim chega lá e pensa: e agora, o que vem pela frente?
Dizem que na vida a gente tem que plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho. Plantei árvore há alguns anos. Escrevi um livro e publiquei dia desses. Tenho um outro, infantil, esperando o momento exato para começar a engatinhar por aí. E mais um (segredo segredo segredo), que vai espiar pelos buraquinhos da janela na hora que tiver que ser. Sabe, acredito nisso, na hora, no sinal, no que eu não consigo tocar - só sentir. O que é a vida, afinal? Pra mim, é uma mistura de sentir e tocar. Porque a gente toca o que sente e sente o que toca, simples e puro dessa maneira. Falta o filho, que vou ter mais pra frente, depois de crescer (será que vou?).
Pensei muito nesse tempo: foram dez meses. Meu livro passou da hora, tava quase queimado, torradinho. Tirei do forno em tempo, senão ia perder o gosto. Deu trabalho, trabalho, trabalho. Lágrima, suor, sorriso e vontade de voltar atrás. Porque quando a gente escreve sempre quer voltar e reescrever o que ficou atrás da porta da memória ou da imaginação. Porque quando a gente escreve e relê sempre acha que uma frase podia estar mais lilás. Gosto de lilás, da cor, do som, da palavra. Gosto delas, as palavras. Minhas amigas, que vezenquando são íntimas, outras vezes só querem beber comigo e fazer folia. Nunca brigamos, ainda bem, nem viramos inimigas. Não gosto. Sou libriana, sensível, tenho o amor escrito na testa, amo quem amo, não gosto de quem não gosto, sem fazer tipo, eu sou simples, é difícil entender isso? Minha lua é em leão, por isso sou a Dona Encrenca, mas sem barraco. Detesto barraco, se tem briga eu digo o que penso, tento ouvir e raciocinar e caio fora, sem bater boca, me desgasta. Meu ascendente é peixes, vivo em outro mundo, no fundo do mar, subo pra respirar, mergulho de novo em mim, nado pra longe, volto pra perto, brinco e me balanço. A vida tem graça sem balanço?
Eu nunca imaginei que estaria aqui onde estou hoje. Quase trinta anos de paredes descascadas, pouco dinheiro na carteira poá, nada no meu nome, um livro na estante, um projeto na gaveta, outro querendo aprender mais sobre a vida, uma outra família surgindo, um trabalho bom e um sentimento que não dorme. Por que eu quero coisas que não sei direito? Não falo de dinheiro, tô bem assim, às vezes me aperto aqui e ali, me orgulho em não precisar pedir arrego e regalias. Nem sempre as coisas são como quero, mas pago as contas do meu jeito. Não falo de amor, pois ele me ensina muito todo dia e mais e mais e aprendo que o amor é aquela brisa que vem do mar e sopra no coração, vez ou outra causa arrepio, mas na maior parte das vezes refresca, embala, faz sonhar. É bom sonhar junto, começar outra vida. Escolher a cor da tinta da parede da sala, do quarto, decidir comprar ou não comprar, eis a questão. Novos rumos, novos ares, nova família, não que eu esteja deixando a minha. Tô seguindo em frente, somando, aumentando. No futuro, mais livros e um bebê. Uma casa com jardim de inverno e gérberas, um fogão a lenha pra fazer pizza, adega cheia de vinhos, paz em cada canto. Viagens, pois não adianta ganhar e ganhar sem usar, é preciso botar o pé no mundo, chutar todas as portas e ver além, sem medo, conhecer culturas, pessoas, lugares, prestar atenção em outros sonhos.
Agora, por exemplo, estive na Bahia. Me doeu de um jeito estranho: fui pra um lugar lindo onde as pessoas eram acomodadas demais. Nenhuma infraestrutura, um posto de saúde sem médicos, um homem que morreu depois de ir três dias seguidos ao posto, onde supostos profissionais da saúde alegavam fraqueza e o pobre homem na verdade morreu de AVC. Mas e daí? Isso vira notícia e indignação por dois ou três dias (o mesmo tempo que o sujeito se sentiu mal e ninguém fez absolutamente nada) e depois o mundo esquece, pois o governo dá luz e comida para todos. Lá, o Lula é adorado, pois o povo tem o que comer e aprende a escrever. E a saúde? Uma mulher com câncer não pode ser atendida no local, pois no posto não existe esse tipo de atendimento. Ela pega uma balsa, vai até Porto Seguro, onde tem hospital, mas lá não tem oncologista para atendê-la, lá não fazem biópsia mamária. A mulher tem que viajar até Salvador, fazer o exame, a cirurgia, a quimoterapia, todos os tratamentos. E se ela não tivesse dinheiro? E se ela não tivesse parentes em Salvador? M-o-r-r-i-a. Quem precisa de oftalmologista tem que esperar 45 dias pra chegada de uma lente que é simples, veja bem (odeio quem fala veja bem), não é de ouro. Um menino chamado Napoleão, pequeno, que aparenta ter 7, 8 anos tem, na verdade, 12. Trabalha fazendo flores de folhas de coqueiro à meia-noite. Oferece para turistas, que rejeitam. Um restaurante separa uma marmita e ele diz "hoje a comida vai ser boa". Meninas que acabaram de "ganhar corpo" se oferecem para os gringos, que pagam alguns míseros reais para satisfazerem seus instintos sexuais. Realidade dolorida. Não que aqui no sul, aqui em Porto Alegre não tenha. Tem. Tem menino de rua em sinaleira-semáforo-sinal fazendo malabarismo pra ganhar uma moeda de 10 centavos. Tem menina de shortinho na volta da rodoviária esperando algum freguês pagar 5 pila pela chupadinha. Tem tudo isso e tem mais. Mas é diferente. É diferente a decadência que eu vi nos olhos daquela gente. Eles não têm o futuro refletido na retina. Eles não têm aquele brilho de quem já foi feliz um dia. Veja bem, de novo, não estou colocando todos os baianos no mesmo saco e rotulando. Estive em alguns lugares, conheci algumas gentes, ouvi algumas histórias, vi coisas no coração das pessoas e, pronto, tirei minhas conclusões. Não me julgue ou me queira mal por isso. Aqui também tem miséria e sujeira, mas ninguém se conforma e diz que é-assim-que-a-coisa-é. Lá, sinto que eles querem pouco (ou nada?). Me entristeceu ver a falta de ambição. A falta de perspectiva não tem um bom cheiro.
Estamos aqui, eu, meu livro, uma vida nova começando e aquela sensação de estar ganhando o mundo. Nisso tudo, penso em quem não sabe o que quer (ou está perdido esperando a vida dar uma carona). Penso nas pessoas que nunca vão realizar seus sonhos - e nos que deixaram de sonhar por causa das cicatrizes em excesso. Penso em tudo que preciso conhecer e aprender. Penso nas escolhas que a gente faz. Me pergunto se tem alguma coisa fora de ordem. E vejo que está tudo no lugar (menos a minha cabeça que perdeu uns parafusos com o tempo).
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