Olhos dos outros

By | 09:43
Ilustração: Wagner Passos





Não gosto de rótulos e algumas palavras, não sei ao certo o motivo, foram carimbadas como pejorativas. Sei que o motivo existe, para tudo tem um, desde que o mundo é mundo existe um "mas". Gosto muito do "mas", mas ele às vezes me cansa. Tudo de vez em quando me cansa, confesso que em alguns dias já acordo cansada. Principalmente quando começa a chegar o verão em Porto Alegre. Aqui, talvez pelo aquecimento global, as estações não são bem definidas. Quem é de fora pensa que "no sul é frio". Não, aqui é quente, eu garanto. Ainda não chegou o verão, mal começou a primavera ("te aaaamo, é primaveraaaa, te aaaaamo, meu amoooor, trago esta rosa"...parei), mas todos os dias eu acordo religiosamente às oito da manhã louca de calor. O sol bate direto na minha janela. E ainda tem o maldito sabiá. O sabiá que canta e acha que me encanta.
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Infantil é uma palavra pejorativa. Por quê? É tão bonito ser criança, tão puro, tão divertido, tão leve, tão tão. Tão eu. Você está expondo a sua opinião e alguém diz "que coisa mais infantil". Você briga com o namorado "não seja tão infantil". Você faz uma cara fofa e "que carinha infantil". Parece que você é obrigada a ser adulta o tempo inteiro, vinte e quatro horas por dia, sem intervalo para o almoço, happy hour, cafezinho, seja lá o que for. Não deixe "infantil" virar coisa feia, suja e besta. Todo mundo deveria colocar o "infantil" num pedestal, fazer oferendas, jogar moedinhas e fazer pedidos para a Fonte da Infantilidade. Acredite: ela ainda salvará você. De você mesmo e dos outros.
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Outra palavra pejorativa é desesperada. Não sei bem quem definiu assim, mas os homens fazem gestos desesperados e são considerados ousados e românticos. Explico: vocês brigaram e aí você corta o cabelo (como toda a mulher pós-separação) e decide viajar (como toda a mulher com-tempo-e-dinheiro-pós-separação) para Roma. Você precisa de um ar europeu e quer dar uma olhada nos italianos bonitões (são os homens mais bonitos do mundo, vá para a Itália! ouvi fofocas de que os franceses dão tapas na cara quando brigam, além do mais não são chegados no sabonete Lux Luxo, não acho um bom negócio). Passagem comprada, malas arrumadas, aeroporto. Você está lá fazendo o check in, pensativa atrás do óculos de sol enorme, quando surge - das trevas ou do próprio céu - o seu ex. O ex que, até poucos dias atrás, era o atual. Que era o homem da sua vida que já estava definida: Roma. Roma e os italianos bonitões. Os italianos bonitões que tomam banho com Lux Luxo. O Lux Luxo que tem extrato de violeta e rosa negra. Roma, nada de França. Os franceses distribuem tapa na cara com a mesma facilidade que você passa desodorante Dove, aquele que não mancha as blusas pretas. Por sinal, foi a melhor coisa que inventaram. Eu achava realmente muito chato tomar banho, passar desodorante e lá pelas tantas, no meio de um jantar, notar que a blusa estava com uma mancha feia de desodorante. Pior ainda é quando a mancha era na manga da blusa ou embaixo, não sei como essas coisas acontecem, juro que passo desodorante nas axilas. Juro! Mas não sei como a mancha vai parar em outros cantos, vai ver que ela é dançarina. Você está fazendo o check in, você e seu amigo óculos de sol enorme e surge Ele. Você fica nervosa e tosse, cof cof, o que ele faz aqui? Eis que uma voz anuncia que o vôo 58475 que vai para o Tocantins está partindo e você suspira e pensa ufa-não-é-o-meu-completa-a-cena-infeliz-de-uma-figa. Seu amigo imaginário coloca um CD pra rodar, aquele que tinha a música de vocês, a preferida de ambos, a que participava de todos os momentos lindos e divinos. E ele se ajoelha em pleno aeroporto. Meu amor, me desculpe, não vá, preciso de você, eu te amo. E pega a sua mão. E a platéia exclama uns "oh, ah, uh" e você sente o seu coração derreter devagar, adeus Itália, adeus italianos bonitões, adeus viagem, adeus Lux Luxo. O homem que era o seu ex e agora é o seu atual cometeu um ato de desespero, de amor, de loucura, então ele é visto como romântico, ousado. E você conta pra todo mundo o quanto é feliz por ter um homem capaz de fazer isso por você, sem medo e vergonha.
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Rótulos são realmente deprimentes. Inverte a cena. Vocês brigaram e aí você corta o cabelo (como toda a mulher pós-separação) e decide viajar (como toda a mulher com-tempo-e-dinheiro-pós-separação) para Roma. Não, Roma é muito longe, vá que ele volte atrás na decisão. Você precisa ir para algum lugar mais perto, pode ser Gramado mesmo. Uma hora e meia, qualquer coisa você desce a serra voando, aluga um jatinho pra te trazer de volta para a capital. Então você descobre que o seu ex resolveu se demitir e redefinir a vida dele, chega de morar em Porto Alegre, chega de calor excessivo, chega de morar no Brasil. Ele resolve ir para a França, atrás das mulheres européias e cheirosas e carinhosas. Nós sabemos que ele se dará mal, dizem que eles não gostam de banho e, bem, você sabe, lá as pessoas se dão tapas na cara. Você sente uma pontinha de felicidade, afinal, ele será bem estapeado. Você movimenta as suas amigas, vizinhas, primas, todo mundo dá apoio moral. Você suborna o porteiro dele, chora para o melhor amigo, fala com aquela sua ex-colega que hoje trabalha na TAM e descobre o horário do vôo do moço. Duas horas antes (você é uma mulher prevenida) você está lá, esperando ele chegar pra dar o bote, a tacada final. Ele chega lindo e cheio de malas e cara de uhu-eu-vou-pegar-todas-as-francesas e você olha e imagina os pensamentos dele e ri rá-elas-não-se-depilam-seu-idiota. Ele olha pra você e diz "você por aqui?" e você diz "precisamos conversar". Ele, esperto como todos os homens, sabe que todas as mulheres precisam conversar, nós já nascemos com uma vitrola ligada em 220V dentro da goela. Então você ajoelha e diz olhando nos olhos dele e chorando (porque na hora de declarações e cenas dantescas mulheres são fiasquentas): Meu amor, me desculpe, não vá, preciso de você, eu te amo. E tenta pegar a mão dele. E ele faz aquele gesto me-larga-tá-todo-mundo-olhando-levanta-logo-do-chão. Ele levanta você com uma puxada forte de braço e diz que não dá mais. Ou diz que dá, não importa o desfecho. Não, não estou louca, o desfecho realmente não importa. Ele pode ou não ficar com você. Pode cancelar a viagem, pode chamar você pra ir junto, pode ir e deixá-la com os sonhos ajoelhados no chão do saguão. Mas uma coisa é certa: você será vista como a Psicopata. A Psicopata Desesperada.
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