Garota enxaqueca

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De vez em quando sinto uma dorzinha na nuca, sei que ela está prestes a chegar. Quando eu vejo, ploft, ela se instalou. Tenho que ficar no escuro, tomar a Santa Neosaldina e os Santos Remédios Fortes que dão sono, porém curam. Quem tem enxaqueca sabe a trabalheira que dá ficar em pé e fazer coisas simples, como tomar banho ou pentear o cabelo. Para caminhar é um sufoco, cada passo dado reflete na cabeça, que lateja. A voz de alguém soa como uma Escola de Samba em plena Sapucaí. Mas nem sempre é enxaqueca, às vezes é só dor de cabeça. Aquela que martela, é insistente, não passa nem a pau, Juvenal. E dê-lhe Aspirina. Mas nem sempre é dor de cabeça, às vezes é só chatice mesmo. Não gosto de Natal.
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Ele está chegando, eu sinto. A cidade não me deixa mentir: luzes e mais luzes. Quem disse que pendurar aquele bandiluzinha nos prédios é bonito, Senhor? Fica um show-pirotécnico-natalino em plena parede de prédio. Tem luz verde, vermelha, azul, cor de rosa, lilás e aquele pisca-pisca-pisca que ofusca-ofusca-ofusca. Presépio vivo, Papai Noel de shopping, Papai Noel de táxi, Papai Noel colado em janelas. Lojas lotadas, ruas lotadas, calçadas lotadas, filas e mais filas pra tudo, gente se batendo, se empurrando, tropeçando, correndo, berrando. O pré-Natal é uma confusão e parece que o povo gosta. Ao invés de se adiantar e comprar os presentes bem, bem antes, não, eles deixam pra bem, bem depois. Quem sofre somos nós, os adiantados. Você precisa comprar durex, entra na papelaria e deixa o durex em cima de uma mesa qualquer, pois a fila está e n o r m e e você não tem p a c i ê n c i a pra filas. Alguém avisa? Você precisa comprar absorvente e entra no supermercado rapidinho, é só pegar, pagar e usar. Que nada, fila e mais fila! E dê-lhe fila. Não gosto de Natal.
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Fulana dá um presente para você, por isso pega mal não dar presente para ela. Fica aquele constrangimento, você se sente mal, poxa, coitada, foi tão delicada. Pronto, presente comprado e entregue para a Fulana. Mas quem é Fulana mesmo? Você mal sabe. Eu quero comprar presente para quem eu gosto. Simples. Ponto. Acabou. Odeio o tem-que-ser, tem-que-dar. É chato e me sinto falsa. Presente é algo muito pessoal, você escolhe com carinho, cuidado. Não gosto de datas especiais, presente é para ser dado a qualquer hora, desde que você sinta vontade. O Natal soa como obrigação. Você tem a obrigação de sorrir, a obrigação de abraçar e dizer Feliz Natal. Você tem que fingir que adora peru com figo. Eu detesto figos. Detesto passas de uva. Detesto a preta e a branca, não tente me enganar. E detesto cidra. Em casa de vó sempre tem cidra. Se bobear é cidra quente, aquelas de macumba. Credo. Não gosto de Natal.
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Me irrito com a caridade natalina, é uma hipocrisia sem fim. Vamos dar presentinho para as crianças do orfanato. Vamos doar fraldas, pirulitos, brinquedos. Ei, senta ao lado da criança e brinca, dá um abraço, faz um cafuné. É muito bonito ser invadido pelo espírito natalino. Mais bonito ainda é ser invadido pelo Espírito do Ano Todo. Pense nisso. Tem o lixeiro que bate na porta e pede o "Natal, tem um Natal pra mim, moça?". Olha, moço, tem Natal todos os anos - infelizmente. Mas se o senhor está falando de dinheiro, olha, também tô precisando, meu salário é baixo e preciso dar presente pra muita gente. Só que você tem-que-dar o Natal pro lixeiro. Sabe por quê? Brasil é Brasil, falta de educação é falta de educação, então aqui se você bobeia o lixeiro depois fica furando o seu saco de lixo. Ou contrata um vira-lata pra rasgar ele todo. Ou então esquece do seu saco. Lixeiro com Alzheimer. Tudo porque não ganhou o Natal. Pausa para o suspiro longo e natalino. Pronto, agora sim: não gosto de Natal.
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Adoro ganhar presente. Adoro desembrulhar presente. Adoro o barulho do papel de presente. Adoro pacotes. Mas, não me pergunte o motivo, de vez em quando fico meio envergonhada. É que nem no Parabéns-pra-você. Fico vermelha, não sei se canto junto, se bato palmas pra mim mesma, se faço aquela cara número cinco sou-convencida-sim-e-tô-de-aniversário-algum-problema?, não sei o que fazer com as mãos. Nunca sei. Odeio não saber o que fazer com as mãos. No Natal fico assim. Ganho presente e se gostei uhu-obrigada-é-lindo. Se não gostei, cof, cof, uhu-obrigada-eu-tava-mesmo-precisando. E o pensamento alfineta: como assim, tava mesmo precisando? Quem tá mesmo precisando de um porta-jóias-dourado-fosco-envelhecido-com-uma-bailarina-tipo-Ana-Botafogo-rodopiando-ao-som-de-uma-musiquinha-que-parece-trilha-de-filme-de-terror (sente a cena: noite com trovão, mulher sozinha em casa, relâmpagos, falta luz, serial killer em ação. tá, agora acrescenta o som de caixinha de música)? Mas você é bem educada e o Papai Noel trouxe no saco do ano retrasado um Disfarce de presente. Cola o sorriso no rosto, larga um obrigada e muda o assunto. Simplinho. Não gosto de Natal.
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Tem o vice-versa. Você compra um presente, crente que a pessoa vai a-m-a-r. Você pensou, pesquisou se ela já tinha, analisou os gostos, apostou que fez a escolha adequada e certeira. Se nem a previsão do tempo acerta, se nem sempre a sorte fica dentro da nossa bolsa, você sabe, tudo pode acontecer. Feliz Natal, comprei isto pra você. A pessoa abre, dá aquele sorriso amarelo retraído de não-vou-rir-muito-pois-acabei-de-comer-e-não-escovei-os-dentes-vá-que-tenha-um-grão-de-lentilha-cravado-entre-o-dente-da-frente-e-a-gengiva. E você fica com a bailarininha de caixinha de música estilo Ana Botafogo dançando na sua mente. Será que acertei? Por que aquela cara? Meu Deus, ela odiou! Oh, dúvidas natalinas cruéis! Pior do que isso só o Chester seco, que você tem que dar um golaço de vinho pra poder descer pela garganta. Não gosto de Natal.
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No dia vinte e quatro é aquela função. Ajuda aqui, ajuda ali, vê se está tudo em ordem, liga para a parentada, vê se não esqueceu nada. Cabelo, maquiagem, vestido, sandália, tudo bem, tudo em dia, tudo certo. O Natal pode ser na casa da tia, da avó, da sogra, da mãe, não importa. Vai ter gente, árvore, Papai Noel, presente, criança, tia velha. Vai ter peru, bebida, gente falando alto. Então você chega, começa a beber pra noite ficar mais animada. Aquele calor, aquela multidão, aquelas nozes, castanhas, passas de uva. Seis mil e nove calorias adquiridas em menos de cinco horas pela comida, sobremesa, birita. Deus do céu, me ajude!, você pensa. Abraça um, abraça dois, abraça três. Conversa, acaba o estoque de assunto, você começa a contar piada. A noite ameaça ir embora, você se olha no espelho e está desarrumada, bêbada e com sono. Vai pra casa, tira a sandália, dorme de roupa mesmo. No outro dia acorda que nem um bicho, mata que é bicho! O cabelo está de leão e a cara de panda, rímel borrado. Você é o próprio zoológico com gorrinho de papai noel. Toma um banho, passa um demaquilante e pensa meu Deus, é só dia 25. Não gosto de Natal.
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No dia vinte e cinco tem almoço natalino. Mais abraços, mais comida, mais bebida. E você num repé desgraçado. Não gosto de Natal. Não gosto mesmo. Ainda prefiro ter 10 enxaquecas. Juntas.

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