Marcas impressas

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Logo que o meu irmão entrou na escolinha eu decidi que queria ir também. Se ele podia ir, por que eu tinha que ficar de fora? Mas ele é mais velho, aprendeu a andar de bicicleta antes, começou a ler antes, voltava para a casa às 4 da madrugada antes.


Ele aprendeu a ler, eu queria ler também. Tudo o que ele aprendia tinha que me ensinar, nunca gostei de ver as coisas acontecerem pela janela, eu metia a cara e não queria nem saber. Não sabia se ia dar estrago, eu seguia o que queria e ponto. Lembro que a minha bicicleta tinha rodinhas, mas decidi que tinha que tirar aquele negócio, queria andar que nem gente grande. Foi a primeira vez que eu caí. Ralei o joelho, saiu sangue, chorei de dor. Chorei por ter visto o sangue. Chorei de susto. Chorei porque tava ardendo. Chorei para limpar o machucado. E chorei porque tinha acabado o esparadrapo. O joelho foi criando aquela casquinha, que acabou caindo e deixando uma pequena cicatriz que tenho até hoje. Lembro bem daquela tarde, da queda, do choro, dos motivos, de tudo.


Até certa idade tive uma idéia falsa de que eu era imortal. Não era consciente, sabido e claro, mas fiz coisas sem pensar, agi na base do impulso, com uma vitalidade, força e coragem incríveis. Sem medo de quedas, deslizes e de ter para o resto da vida uma cicatriz de lembrança em joelhos, braços, rosto, mãos.


Cresci, acumulei experiências, tropeços, fins e recomeços e não sei até que ponto vale a pena ter a seriedade de um adulto. Seria muito mais fácil esquecer ardências, dores, sustos, sangues e temores. Seria, mas não é. Algumas situações traumáticas e dolorosas não fazem as malas e saem da memória ou do coração. Sou humana e, por mais que eu dê aquela chacoalhada interna, certas marcas nunca vão sair de mim. Marcas que, de lambuja, deixam uma espécie de medo impresso no meio da testa. Medo que acaba me impedindo de tirar as rodinhas da bicicleta e sair pedalando sem me preocupar se vou dar de cara no morrinho de grama ou se vou, de repente, parar embaixo de um ônibus.


Com alguma melancolia concluo que as muitas experiências vividas nos deixam um pouco covardes. Essa expressão que popularmente chamam de pé atrás, no fundo, quer dizer vá - com - o - freio - de - mão - puxado. Só que eu nunca soube viver dessa maneira. Não sei ter reservas. Saio abrindo o jogo, falando das minhas casquinhas e arranhões. Tem gente que se esconde, eu me mostro. Não tenho o menor problema em admitir que dou ração para alguns medos. Pensando bem também alimento algumas fugas. Porque eu fujo sim, quem nunca fugiu? Eu fugia de mim o tempo inteiro. Só que me dei conta que cicatrizes sempre existirão e, acredite, algumas nem são tão ruins assim. São elas que nos moldam, nos fazem ser quem somos e, pode apostar, definem os nossos medos passados, presentes e futuros. São elas que diferenciam as pessoas. E algumas dão até um certo charme.



* texto de 25 de abril de 2008.
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