Tem gente que não consegue suportar

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Não era cedo, mas isso pouco importava. Ela nunca ligava para horários. Tinha uma vida um pouco desregrada, apesar da rotina. Todo dia acordava, lia o jornal, tomava café preto sem açúcar nem adoçante, comia uma fatia de mamão, duas bolachinhas sem sal e abria a janela. Ficava horas olhando o céu, mesmo com chuva. Ela apreciava as coisas pequenas, como respirar ar puro ou fazer um carinho no gato da vizinha. Não gostava nada de ouvir boatos e falatórios, por isso se mantinha distante de fofocas e de gente com cara de má. Achava que as pessoas se entregavam pelos olhos, pensava que olhando fundo em algum olho descobriria o mundo.


Depois do café, as visitas. Fazia trabalho voluntário, sentia necessidade de ser útil, amenizar dores alheias e acalentar corações um pouco congelados pelo desgosto que a vida trouxe. Se perguntava se a vida trazia mesmo desgosto e, automaticamente, respondia para si mesma: sim, ela traz, mas nós é que precisamos decidir para onde ele vai. Seria possível passar a perna no desgosto? Talvez, e era isso que ela fazia. Vivia um dia de cada vez, fazia seus trabalhos voluntários, olhava para o céu durante tempos infinitos, escrevia para ganhar algum dinheiro e bebia. Bebia muito. Saía todas as noites. Era bonita, mas não se deixava envolver. Tinha limites, não deixava ninguém se aproximar muito. Por essa razão, não tinha amigos verdadeiros. Não era só, pois se amava de tal forma que beirava o exagero. E sentia uma ponta de sei-lá-o-quê.


Era o sei-lá-o-quê que causava uma tormenta no sistema nervoso central: imaginava como seriam os anos mais na frente. Ficaria só? Dedicaria todo o tempo do mundo ao gato da vizinha? Era bonito e coisa e tal essa coisa de ser boa, de fazer o bem, de trabalhar o suficiente para se manter, nem mais nem menos. Ela achava um absurdo quem se matava trabalhando e não tinha nenhum prazer. Por isso, trabalhava o necessário e gastava tudo em noitadas. Bebia muito e beijava bocas. Chegava em casa tarde, tinha a insônia como parceira e esquecia os nomes dos homens que frequentavam sua casa. Não se envolvia com nenhum: era tudo sexo. Sem palavras, só ação. Sem carinhos nem confidências nem amanhã-eu-te-ligo: ela mentia o telefone. E o nome. E a idade. E tudo. Ela mentia muito. Pensava que assim ficaria protegida.


O sei-lá-o-quê um dia começou a revirar o esôfago. Opa, ela pensou. O que está havendo? Um dia os questionamentos entram pelos buraquinhos da janela. Então, ela decidiu fazer uma retrospectiva emocional. Percebeu que não conseguiu combater tudo o que ele havia lhe causado. Engoliu as interrogações, tomou uns goles de conhaque e pegou a arma da gaveta.


- É isso aí.


Foi tudo o que ouviram antes do primeiro e último disparo.

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